Faith me espiava entre uma mordida e outra no burrito que havíamos comprado no caminho quando pensava que eu não estava vendo, o meu já estava acabado há minutos. Seus cabelos esvoaçavam com o contato do vento naquela noite fria de Boston. Embora estivesse com um casaco quente o suficiente para o mais frio do inverno, questionei se era mesmo boa ideia trazê-la ao terraço do hotel.
— Está com frio? Podemos entrar — sugeri.
Ela afastou desajeitadamente um cabelo que atacava sua boca, impedindo que comesse, em seguida negou.
— Gosto da vista — apontou com a cabeça para a cidade de arranha-céus iluminada atrás do mar à nossa frente — alguns andares a baixo.
Concordei, cruzando minhas mãos ao me debruçar sobre o concreto que servia de barreira para que não caíssemos.
— Só não sei se podemos estar aqui — acrescentou receosa.
— Podemos. É um lugar que costumo frequentar.
O comentário foi adiado enquanto finalizava o burrito, dando tempo para que formulasse outra frase que contornasse o que queria saber de verdade. Mesmo que iniciando pelas razões erradas, eu a conhecia o bastante para saber interpretar sua linguagem corporal. Ela se balançava entre um pé e outro, indo para a direita e a esquerda compulsivamente.
— Claro, você conhece tudo, certo? — disse ela enrolando a embalagem na mão e limpando a boca com o guardanapo de papel.
Eu não podia dirigir ao The light aquela hora da noite para extravasar o sentimento frustrante que me corroía, mas não sabia que seria tão difícil controlar as células destrutivas. Me surpreendia conseguir estar parado, me alimentando da presença de Faith e seus minuciosos detalhes. Não que eu pudesse reclamar da atividade.
— Não vou surtar, Faith — garanti mais para mim mesmo do que para ela, adivinhando seus pensamentos quando me olhou com preocupação outra vez.
O balançar não cessou.
— Você me diria se fosse? Acho que não. Mas não se importe com isso, posso resolver de outra forma — disse com uma tranquilidade superficial. Seus neurônios trabalhavam duro para formular planos que eu tinha certeza não serem bons.
— Nós — enfatizei — vamos resolver de outra forma, começando na Califórnia amanhã.
Com um suspiro alto, ela apoiou o queixo no concreto, os olhos estagnando na imensidão a sua frente, mas não maior que a profundidade de suas reflexões.
— Desculpe por te colocar na frente de George, eu não havia pensado nessas consequências. Ele é mais difícil de lidar do que eu me lembrava — lamentei. Não foi boa ideia relembrar aquele momento, atrasava meu progresso. Reforcei os nós nas mãos.
Ela deu de ombros como se aquilo fosse insignificante, mas não era, sua expressão assustada ficara fixa em minha memória.
— Pelo menos um membro da sua família não me odeia — brincou.
Não estávamos no clima para piadas. De qualquer forma, fazer piadas era sua melhor maneira de lidar com situações desastrosas.
— Minha família é uma catástrofe, não gostarem de você te faz uma pessoa melhor.
— Claro — concordou vagamente.
Eu não tinha o costume de utilizar auto controle, e sentia meu corpo todo rejeitar a inibição em forma de uma náusea sólida, empurrando toda a intoxicação pelo caminho da minha garganta, tentando expelir pela minha boca. O tremor em meus músculos não era apenas uma forma de manifestar a presença de uma doença. Fechei meus olhos, talvez ajudasse.
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One Life
FanfictionAparentemente, não havia nada de extraordinário na história dos dois. Eram duas pessoas normais, favorecidas pelo capitalismo, e embora não parecesse, ambos tinham muito em comum. O fato de terem o que quisessem era um deles, mas também aquele senti...