Capítulo XXI

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Abri os olhos calmamente. O clarão de luz me deixava tonto, e fazia com que minhas pupilas ficassem irritadas. Estava em casa. O teto branco descascando da sala, o lustre empoeirado que há anos não via uma limpeza. O cheiro do café da minha avó Amélia que pairava no ar e invadia minhas narinas. Tentei me mover, e senti meu corpo inteiro doer. Sim, me lembrei a causa dessa dor e a raiva me consumiu. Mas, como fui parar alí?

-Ele deve ter acordado. -Ouvi algumas vozes vindo da cozinha.

-Ave Maria menina! Meu neto foi espancado...

A voz fraca e fina era de Amélia. A outra era tão suave e calma que não reconhecia.

-Foi um covarde! -A pessoa mostrava indignação.

-Se fosse na minha terrinha, esse cabra tava era lascado na peixeira.

Ouvi ela gargalhar. Era um som tão gostoso de se ouvir que até era anestésico para as dores que estava sentindo.

-Bom, eu estou indo.

Podia ouvir seus passos calmos e lentos no carpete da sala. O seu cheiro era de menta e avelã, mesmo misturado com o cheiro de café da minha avó. Abri os olhos lentamente e pude ver a sua figura perto da porta. Ela era linda. Seus olhos verdes e densos me olhava curiosa. Os cabelos negros cacheados. Seu rosto redondo e cheio de sardas. O corpo era robusto, e mesmo estando acima do seu peso, era linda. Única.

-Vó...-Sussurrei.

Amélia me olhou surpresa e a moça me encarava envergonhada. Podia ver nos seus olhos a admiração por mim. E depois que percebi suas bochechas ficarem vermelhas como duas maçãs apetitosa. Tive certeza que estava tão encantada quanto eu.

-Samuel você está bem? -Disse minha avó, correndo até mim. Envolvendo seus braços magros ao redor do meu pescoço.

-Se a senhora não me apertar muito eu agradeço... -Pedi quase sem fôlego.

Ela me soltou e sorriu para a moça que ainda continuava me encarando.

-Viu Melissa? Ele está bem.

Melissa? Esse era o seu nome? A menina que me ajudou? Na verdade, tinha sido ela? Nem sei de nada. Estou tão perdido.

-Fico feliz que tenha ajudado.

Seu sorriso era tão singelo e delicado. Seus lábios carnudos e vermelhos eram realmente tentadores. Mas, nem as melhores mulheres irão chegar aos pés da Ana Helena. Como eu queria que tivesse sido ela alí parada sorrindo para mim.

-Obrigada Melissa. -Disse, me sentando com calma no sofá. Meu corpo inteiro estava dolorido.

-Esse seu patrão irá ser processado, porque não fiz neto meu para ser espancado por pessoas que não escovam os dentes.

Não conseguir me conter e acabei caindo na risada. Mesmo meus pulmões pedindo socorro.

-Vó, esquece ele.

Amélia colocou as mãos na cintura e bateu o pé esquerdo no chão. Me lembrei de quando era criança e quebrava suas roseiras do jardim jogando bola. Todas as vezes apanhava de chinelo.

-Samuel eu não vou deixar aquele cara em paz, enquanto não arrancar aquelas calças horrorosas dele.

Melissa ria baixinho. E quase não notei sua presença alí.

-Estou indo. -Falou abrindo a porta.

Antes que eu pudesse agradecer ou dizer alguma coisa. Amélia correu e segurou seu braço. Melissa a encarou confusa e pude ver o quanto ficava linda perdida.

-Samuel como agradecimento, irá te levar para o cinema.

Senti meu coração apertar. Minha avó montando encontros para mim? Nessa altura do campeonato precisaria da ajuda de um velha que vende crochês e queima panquecas? É o cúmulo da vergonha alheia.

-Sim, depois marcamos isso. -Sussurrou constrangida.

-Passe seu número para ele.

Queria dizer alguma, mas só fiquei encarando seu rosto constrangido. Melissa pegou uma agenda rosa da sua bolsa, anotou alguma coisa e entregou para a minha avó. Antes que virasse as costas e fosse embora. Sorriu para mim. Como se precisasse desse encontro. E por incrível que pareça, eu também.

-Pronto! -Gritou minha avó com o papel nas mãos enrugadas.

-Porque fez isso?

Ela fechou a porta e virou se para mim. Sua expressão era de satisfação. Como quando fazia meus pais brigarem a ponto de se separarem. Mesmo sabendo que isso nunca iria acontecer. Lúcia e Pedro eram almas gêmeas e ninguém iria mudar isso.

-Vou desencalhar você.

Tossi envergonhado.

-Como assim?

Ela apenas jogou o papel em cima da mesinha de centro. E sorriu vitoriosa.

-Ela é filha do dono de uma rede de supermercados.

Agora eu entendi. Melissa tinha dinheiro, e para Amélia isso importava mais que o amor verdadeiro e honesto.

-E o que isso vale para mim?

Ela levantou uma das sombrancelhas.

-Para você nada. Mas, para mim o futuro que Lúcia jogou fora.

Eu queria chorar alí mesmo. Meu pai podia ter sido pobre. Porém, o que reinou entre ele e minha mãe foi o amor verdadeiro e puro. Se um dia me perguntarem se já existiu algo assim, não direi Romeu e Julieta, apenas falarei Pedro e Lúcia.

-Apenas para te querer comandar a vida dos outros e viva a sua! -Gritei. A dor que sentia pelo o meu corpo, queimava minha pele agora.

-Samuel, seu pai não é esse santo que imagina!

-Como assim?

Seus olhos desviaram dos meus. E antes que me respondesse, deu de ombros e subiu as escadas. Mesmo eu gritando seu nome e querendo saber o que escondia. Apenas me deixou falando sozinho.

Que segredo era esse que meu pai tinha? Porque tanto ódio? Porque tanto rancor? Não é normal isso. De verdade, havia segredos que todos escondiam de mim. Porque?

Meu corpo estava dolorido. Sentia meu coração pulsar na palma da minha mão. Lágrimas de sangue escorria pelo o meu rosto. E apenas tentava me acalmar pensando em Ana. Apenas ela. Meu refúgio. Minha mata. Meu amor.

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Coração de Papel ( Revisado)Onde histórias criam vida. Descubra agora