*Lica.*
Devia ser quase três horas da manhã e eu estava ali parada na varanda, fumando um cigarro enquanto olhava a chuva fina cair molhando a cidade que dormia.
Era apenas mais uma noite de insônia como tantas outras... Mentira. A quem eu estava tentando enganar? As coisas estavam longe de parecerem normais, eu estava longe de parecer comum... Tudo estava diferente e pesado, o homem que eu mais amei e mais odiei estava morto e continuava influenciando minha vida, brincando comigo como se eu fosse apenas mais uma peça em um jogo de tabuleiro.
Edgar Gutierrez, o magnata estava morto. Meu pai estava morto pela segunda vez em minha vida e ainda assim, ainda tinha o poder de me fazer sentir como se eu fosse apenas uma garotinha pequena, assustada e deslocada em seu mundo cheio de regras e aparências.
O apartamento estava silencioso com suas paredes brancas, com seus móveis caros, com o toque impessoal em cada parte, exceto é claro, pelo meu quarto que ainda era o mesmo de quando eu era apenas uma adolescente... As paredes grafitadas com frases desbotadas, um armário cheio de roupas antigas que ainda me cabiam... Era como voltar no tempo, uma época onde o caos dominava cada parte daquele quarto... Eram os mesmos medos, as mesmas inseguranças, era como se o tempo estivesse congelado, me lembrando de como tudo estava errado.
Eu observava a fumaça se desfazer no ar, eu tentava de alguma forma me lembrar de respirar, porque não importava quantos anos tivessem passado, aquele maldito apartamento me fazia sufocar, mas dessa vez eu precisava aguentar, eu precisava ficar.
Se eu pudesse escolher, eu teria feito exatamente a mesma coisa que eu tinha feito há quatro anos atrás. Eu teria ido embora, eu desistiria de lutar, porque a batalha já estava perdida muito antes de começar. Tudo naquele lugar me fazia querer vomitar.
***
*Samantha.*
Deitada na cama, eu revirava sem conseguir dormir, eu ouvia o barulho da chuva e só conseguia me lembrar do dia do enterro, daquela chuva que parecia anunciar um mau agouro, como se me avisasse sobre o que estava por vir.
Oito meses presa com a pior pessoa do universo neste apartamento que no momento parecia imenso com a ausência de seus antigos donos. Heloísa me odiava e eu sabia que sim, pois sempre que ela me olhava, seu olhar me condenava, me julgava, me maltratava.
Se as coisas tivessem sido diferentes, talvez minha meia irmã não fosse tão difícil de lidar, mas não dá apenas para apagar a história. Eu não tinha culpa do fato de o pai dela me adorar, de ele ter de fato ocupado o lugar do meu pai e de ter transformado nossa casa em um lar.
Eu acho que Heloísa me culpava por nunca ter tido a atenção que o Edgar costumava me dar... Mas o que eu poderia fazer? Quando o pai dela entrou em minha vida, eu estava destruída, mamãe estava desiludida e ela estava apenas sobrevivendo à morte do meu pai, isso sem contar nas tentativas suicidas, tentativas desesperadas em se juntar ao único cara parecia lhe salvar.
Eu não iria conseguir dormir, essa casa estava cheia de fantasmas, cheia de conversas inacabadas, cheia de promessas quebradas, relações frustradas, mas ainda assim, eu precisava continuar a lutar, porque por mais que eu tivesse enterrado os mortos, eu sei que eles continuavam a me cercar, mas de todos ali, eu era a única que permanecia viva, a única que ainda tinha chance de melhorar e era por essa melhora que eu deveria lutar.
Eu decidi sair do quarto e segui para a cozinha, eu precisava de uma xícara de chá, porque como minha mãe costumava falar: "Filha, calma, beba sempre uma xícara de chá e perceba que por mais difíceis que as coisas estejam agora, tudo vai melhorar".
Lembrar da minha mãe me fazia chorar, mas não essa noite, porque eu já não tinha mais lágrimas para derramar. Desde o dia do telefonema, eu chorava sem parar durante horas até sentir o meu corpo pesar exausto.
Eu estava quase terminando de preparar o chá quando eu ouvi passos a se aproximar e mesmo que eu talvez fosse me arrepender de perguntar, eu encarei a garota de cabelos despontados que agora estava a minha frente e perguntei:
- Você quer uma xícara de chá?
- Não, valeu. Acho que preciso de algo mais forte.
- Entendo.
Heloísa se aproximou de mim e pegou um copo, depois se serviu de uma dose generosa de whisky da garrafa que estava em suas mãos. Ela devia ter achado uma das garrafas importadas que Edgar sempre deixava no mini bar da sala.
- Você quer? – Ela me perguntou já sabendo a resposta.
- Não, obrigada. Você chegou faz muito tempo em casa?
- Muito tempo, mas eu preferi ficar no meu quarto, trancada.
- Velhos hábitos nunca morrem.
- Eu prefiro assim, é o único lugar dessa casa que faz algum sentido para mim.
-Imagino que sim. Mamãe não deixou que o seu pai mexesse em nada desde o dia em que você decidiu sair de casa. Ela mesma limpava suas coisas, mas relaxa, ela nunca tocou em nada... Ela só tirava o pó, ela não queria que nada estragasse, assim, se algum dia você voltasse, poderia decidir o que gostaria de fazer com as suas coisas.
- Imagino que agora é a hora em que eu me mostro grata.
- Isso seria legal da sua parte, mas eu te conheço, você não falaria nada.
-Hum.
- Relaxa, eu não estou aqui para te cobrar nada. Minha mãe está morta agora, então sua gratidão, também não faz falta.
- Eu não sinto nada, seria hipócrita da minha parte dizer que eu me importo.
- Eu sei que você não se importa, você nunca se importou na verdade. Você foi embora e deixou tudo para trás... Deixou até quem não tinha nada a ver com sua relação com o seu pai.
- Imagino que você esteja falando do Felipe.
- Eu estou falando de tudo, mas principalmente dele.
- Como se você de fato ligasse para isso... Foi só eu sair de cena para você dormir com ele.
- Pode parar de me julgar, eu não tenho culpa das suas escolhas.
- Não, mas bem que você gostou de me ver fora do seu caminho.
- Chega. Eu não vou discutir, aliás, está bem tarde, melhor eu ir dormir. Boa noite, Heloísa.
- Boa noite meia irmãzinha, pode fugir... Aproveita, porque você sabe que nossa conversa não acabou aqui. – Ela falou enquanto eu me afastava sem nem olhar para trás.
Eu cheguei ao meu quarto e tranquei a porta temendo que Heloísa pudesse me seguir, depois eu bebi a xícara de chá que eu trouxe comigo, sentindo o calor daquele líquido me aquecer devagar. Deitei na cama e exausta eu senti meus olhos começarem a fechar fazendo com que o mundo a minha volta começasse a se acalmar.
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O Apartamento-Limantha.
RomanceO que você faria se estivesse preso a uma situação com alguém que você não suporta por causa de um contrato inquebrável? Samantha Lambertini e Heloísa Gutierrez se encontram exatamente assim! Tudo começou quando as duas meninas ainda eram adole...