Cap 20. Revirando o baú.

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*Lica.*

  Sono, muito sono e a dor de cabeça por dormir somente algumas poucas horas me dominavam... Café, eu precisava de muito café, um balde de café forte e amargo.

  Eu me levantei preguiçosa da cama, tomei um banho para me ajudar a acordar, mas não adiantou muito. Eu me vesti com uma roupa simples e provisória, depois guardei o meu figurino para a apresentação da balada "Direto do túnel do tempo" que aconteceria hoje, junto com tudo o que precisaria levar para o galpão do Roney.

  Depois de terminar de organizar minhas coisas, fui até a cozinha preparar o meu tão abençoado café. Eu já podia sentir aquele aroma inebriante do líquido escuro que vinha de dentro do bule da cafeteira elétrica preencher o ambiente e sentia minha boca aguar apenas por imaginar aquele sabor forte em minha caneca, pronto para ser bebido por mim.

  Eu já estava no meio do meu café da manhã quando eu percebi a presença de minha meia irmã entrando na cozinha.

  - Bom dia. - Samantha disse enquanto se dirigia ao armário de canecas.

  - Bom dia. - Falei, me concentrando em dar mais uma mordida em meu misto quente.

  Samantha se serviu um pouco com o café que eu havia preparado e sorriu com um sorriso satisfeito de quem pareceu realmente gostar de provar daquela bebida quente e forte.

  - Nossa, era tudo o que eu precisava! -Samantha falou parecendo satisfeita.

  - De nada. - Provoquei.

  - Parece que morar em Paris sozinha te fez muito bem, seu café está muito incrível!

  - Pois é, você não tem ideia de como é difícil encontrar um café decente quando se está fora do Brasil... Juro, ou eu aprendia a fazer uma bebida decente ou eu teria de me contentar em beber aquela água suja que eles chamavam de café.

  - Então a senhorita está de parabéns, porque seu café está bem bom, superou a média.

  - Uau, você me elogiando e ainda de manhã?! Você tá doente?

  - Besta! Eu só sei reconhecer e apreciar um bom café, não precisa de tanto drama. Eu estou realmente bem hoje.

  - Sei.

  - Hum, falando em hoje... Você ou as meninas precisam que eu vá mais cedo para o galpão para ajudar com alguma coisa da balada?

  - Nada, tá de boa, nós arrumamos a maior parte ontem de noite.

  - Poxa, se eu soubesse, eu teria ajudado.

  - Sério, tá de boa.

  Samantha se serviu com mais um pouco de café e se apoiou na bancada... Seus cabelos estavam presos em um coque frouxo e ela vestia seu costumeiro kimono de seda. Ela estava descalça e era engraçado de ver aquela imagem tão comum parecer tão organizada ao mesmo tempo, porque Samantha era assim, fazia a gente se dar conta de que podia existir algo impecável até em uma simples manhã de sábado.

  - Hum... Preparada para hoje? - Falei quebrando o silêncio.

  - Não, e você?

  - Eu nasci preparada.

  - Cara, você é inacreditável.

  - Quê?! Eu sei, eu sou única.

  - Única e nem um pouco convencida.

  - Convencida, não, realista.

  - Sei... Mas agora falando sério... O que as Garotas do vagão vão apresentar hoje?

  - Eu só te conto, se você me contar o que os Lagostins pretendem tocar hoje.

   - Já disse, é segredo.

   - Então você vai ter de assistir nossa apresentação para descobrir.

   - Parece que sim... E você terá de assistir a dos Lagostins.

  - Bom, agora eu preciso ir. Já tem cinco chamadas perdidas da Benê no meu celular, se eu não me apressar, é capaz dela vir aqui me buscar.

  - Eu não duvido. - Falou Samantha divertida.

  - Pior que eu também, não. - Concluí, indo em direção a pia carregando minha caneca de café vazia e meu prato sujo.

  - Lica, pode deixar que eu lavo a louça. Corre, antes que a Benê te mate por chegar tarde.

  - Sério?! – Perguntei surpresa com atitude dela.

  - Sério, é o mínimo que eu posso fazer para te agradecer pelo café.

  - Não precisa agradecer.

  - Mas eu quero! Agora vai, antes que eu mude de ideia.

  - Valeu irmãzinha!

  - De nada, e cara, eu não sou sua irmã.

  - Ok, obrigada Sammy. – Eu a agradeci e saí correndo para escovar os dentes e para pegar minhas coisas para poder finalmente seguir para o galpão.

***

*Samantha.*

  Heloísa saiu da cozinha me deixando sozinha, era ainda um pouco estranho pensar que depois de anos de guerra aparentemente estávamos em paz... E devo confessar que mais estranho, era conseguir acreditar que essa calmaria parecia normal, afinal de contas, era apenas mais um sábado comum, onde nós duas tomávamos café da manhã na cozinha daquele apartamento que costumávamos dividir em nossa adolescência, uma cena tão comum e tão banal, mas ao mesmo tempo tão diferente... Era a primeira vez que fazíamos isso sem sentirmos o clima pesar e isso era tão bom.

  Depois de lavar a louça do café da manhã, eu segui para o meu quarto, levando comigo duas cadeiras, uma para eu subir e pegar as caixas de roupas para a doação que estavam nas prateleiras de cima de meu armário e outra para justamente conseguir empilhar as caixas, nas quais eu tinha certeza que encontraria o meu figurino para a apresentação dos Lagostins na balada de hoje de tarde.

  Três caixas e uma infinidade de memórias... Eu não me lembro da última vez em que usei alguma daquelas roupas, eu só sei que minha mudança de visual do mais despojado ao clássico se deu logo no período em que comecei a faculdade... Eu só sei que aos poucos eu fui deixando de usar os meus coletes, os meus shorts, minhas batas, meus sapatos de verniz... As minhas unhas foram ficando mais quadradas e delicadas, tingidas com cores claras, meu cabelo de solto, passou a ter os seus cachos domados por grampos de cabelos, meus anéis foram substituídos por uma única aliança de brilhante.

  Eu não sei o motivo de minha mãe ter guardado aquelas roupas, no lugar de fazer a doação como nós tínhamos combinado, mas eu acho que no fundo ela sabia que talvez eu precisasse de novo daquelas coisas ou sabia que talvez eu ainda não estivesse pronta para me desfazer completamente do meu passado.

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