XXIV

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---Alô? Aqui é Labella Jazin.

---Sim, Senhorita Jazin, em que posso ajudar?

---Eu quero trancar a minha matrícula.

---Okay, querida. Enviarei a solicitação para a direção. Amanhã às 7 da manhã, venha à Grand Sophia, é necessário que assine algumas coisas.

---Okay, obrigada.

Voltei a deitar. Foi há uma semana atrás. Mas não consigo pensar em outra coisa. Odeio o som do meu choro convulsivo, mas não consigo evitar. Não consigo evitar olhar para Arian e reconhecer traços que me lembram Fred. Não consigo entrar na Milan sem lembrar do seu sorriso me chamando para experimentar alguma receita que inventou e de um sorriso ainda maior quando eu aprovava. E das suas bochechas vermelhas quando eu beijava o seu rosto ou olhava em seus olhos, ele era a única pessoa que me fazia sentir livre para expressar carinho assim.

---Ah, Fred. Agradeço tanto à Deus por ter tido a oportunidade de conhecer você, -- desabei -- mas é que você faz tanta falta.

Adormeci. Quando acordei, tomei o banho que não tive forças para tomar no dia anterior. Quando ia sair, notei que a minha bolsa estava com um cheiro estranho. Urina de gato. Janela aberta. Droga! Troquei de bolsa, mas parece que essa porcaria impregnou nas minhas coisas e nas minhas mãos.

---Que. Se. Dane.

Saí de chinelo. Blusa de frio amarrada estranho na cintura. Cabelo de qualquer jeito. Fedendo à urina de gato. Maravilhosa.

Resolvi ir andando, para espairecer. No meio do caminho, chuva. Respirei fundo.

---Pelo menos o fedor sai.

Continuei meu caminho. E chuva que Deus manda*. E eu andando devagar na rua, às 6:10 da manhã. Mandando meu celular se ferrar molhando dentro da bolsa e agradecendo por meus documentos estarem plastificados. Cheguei à Grand Sophia. Ensopada.

Fui ao banheiro, tirei minhas roupas, torci e vesti-as. Meu celular, de fato, queimou. Quero sair daquele prédio antes que os alunos cheguem. Quando ia bater na porta da secretaria, Maconi abriu-a.

---Senhorita Jazin! O que houve? Por que sumiu?

Parei para digerir suas palavras.

---Desculpa, Senhor Maconi, mas sua preocupação soa no mínimo suspeita.

---Rum. -- retomou sua pose, empinou o nariz e seguiu seu caminho.

Resolvi tudo, mas não quero ir para casa. De repente, um espirro e meu ouvido direito entupiu, como sempre acontece de dois em dois anos. Suspirei olhando para o céu e lembrei que um dia após o enterro eu devia ter ido à delegacia. Mas não importa, Victor não me procurou depois disso.

Puz-me a caminhar pelo campus, entrei no auditório de música, ele nunca é usado durante a manhã. Subi no palco e puxei o grande pano que cobria o piano negro.

Não sei tocar, mas apertar as teclas a esmo me ajuda a descarregar a mente. É o que faço. Lembro do orfanato, Tales e eu estudávamos música nos livros da biblioteca, aprendemos toda a teoria, mas na prática, não sabíamos nada sobre nenhum instrumento.

Ah, Tales. Eu o amava. De fato, eu sonhava que um dia nos casaríamos. Puxa. Eu só tinha 14 anos quando ele fugiu do orfanato e mais tarde, chegou a notícia do seu suicídio. Ele nem sabia que eu era apaixonada por ele, além disso, ele era dois anos mais velho que eu. Talvez eu seja o azar de quem está ao meu redor. Talvez seja eu quem deva sofrer tudo o que acontece com quem me rodeia. Talvez eu seja apenas um buraco negro esperando o próximo astronauta para engoli-lo e acabar com sua existência.

Me assustei com o impacto das notas graves reverberando no meu ouvido esquerdo e contrastando com as notas agudíssimas que eu tocava. Eu já sabia quem era, de alguma forma, eu pressenti.

---Você se esqueceu de mim? --ele perguntou. Foi justamente a mesma pergunta que me fiz quando Tales fugiu.

Olhei para o seu rosto coberto mas meu olhar caiu de volta para o piano e minhas lágrimas voltaram. Ouvi-o chorar também e logo depois, senti seu corpo também molhado me abraçar.

---Você vai dormir comigo hoje?

---Vou.

---De verdade?

---De verdade.



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* "E chuva que Deus manda" é uma expressão com o mesmo significado de chover muito e/ou forte. Bom, à caráter de curiosidade ou caso alguém tenha ficado em dúvida.

Psicopata: DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora