Meu, que ódio. Que ódio, que ódio, que ódio, QUE ÓDIO! NÃO DÁ PRA MEDIR MEU ÓDIO. MEU ÓDIO NÃO CABE NESTE ARQUIVO NEM EM LETRAS GARRAFAIS NEM EM NEGRITO E ITÁLICO! VONTADE DE ENFIAR UMA FACA NA GARGANTA DAQUELE DESGRAÇADO.
Ontem de manhã minha mãe me ligou. Eram mais ou menos dez da manhã; por pouco ela não me tira da cama. Eu estava na cozinha tomando café quando meu celular pessoal toca. E ele geralmente não toca, nem por ela, porque, na maioria das vezes, nos falamos por mensagem. “Meu filho...”, ela com a voz trêmula, “você tá ocupado agora?”. “Não. O que foi? Aconteceu alguma coisa?”, perguntei, já percebendo que ela estava alterada. “Você pode vir aqui pra casa da sua avó agora?”. Sua avó é a minha vó paterna, sobre a qual eu já falei aqui. Minha avó materna é falecida. Minha mãe e a minha avó, sogra dela, se dão muito bem, mas a minha mãe não é de frequentar a casa dela. “Você tá na casa dela? O que houve?”, eu perguntei, pra confirmar. “Tô, sim... Você pode vir agora?”, ela insistiu sem responder minha pergunta. Vendo que realmente tinha alguma coisa errada, desliguei o telefone, troquei de roupa rapidinho, deixei um recado pro Bruno na geladeira, peguei um táxi e fui pra lá, porque ir de ônibus demoraria demais e eu estava aflito pra saber o que tinha acontecido.
Fui. Chegando na casa da minha avó, toquei a campainha e ela veio atender. Dei um abraço rápido nela e ela logo abriu passagem pra eu entrar. Numa mesa de jantar que ficava na copa, minha mãe estava sentada, com a cabeça baixa, mão na testa, cabelos cobrindo a mão e o rosto. “Mãe?”, chamei. Ela não levantou a cabeça, mas percebi que ouviu meu chamado porque ela coçou a testa quando ouviu minha voz. “O que aconteceu, mãe?”, perguntei de novo, me aproximando até chegar ao lado dela. E ela imóvel. Minha avó passou por nós e foi até a cozinha, sem interferir na cena. Logo minha mãe começou a chorar, ainda sem olhar pra mim. Me sentei ao lado dela e toquei seu braço, esperando uma reação. Ela evitou meu toque, mas eu insisti. “Mãe, olha pra mim!”. Ela não me obedecia. Puxei o braço dela levemente e consegui fazê-la baixar a guarda. Segurei o queixo dela e virei seu rosto em direção a mim. Logo eu vi o que ela estava escondendo: um roxo bem expressivo no rosto, na região do zigomático (tive que procurar isso no Google).
Instantaneamente meu sangue ferveu e eu me levantei da cadeira, sabendo exatamente o que tinha acontecido. E Leonor chorando. Era a única coisa que ela sabia fazer. E chorando, chorando, e eu de pé, com a boca espumando de ódio, porque eu sabia tanto o que tinha acontecido quanto que, certamente, ela não havia feito nem faria nada a respeito. “Você denunciou esse cara, não é? E é por isso que está aqui na casa da vovó agora”, perguntei calmamente, tentando engolir a seco o ódio que eu sentia. Minha mãe só balançou a cabeça negativamente e voltou a esconder o rosto com a mão. “ATÉ QUANDO ISSO VAI SER ASSIM?”, vociferei. Sei que meu grito não era do que ela precisava naquele momento, mas minha indignação era mais forte do que minha compaixão pela situação dela. Minha vó voltou da cozinha trazendo uma xícara de chá. “Calma, Daniel; não fica bravo com ela. Sua mãe tem passado por maus bocados”, ela disse, entregando o chá à minha mãe e tentando me acalmar. Minha mãe agradeceu e levou a xícara à boca, ainda de cabeça baixa, sem me encarar. “Ele te colocou pra fora de casa também? É isso?”, perguntei. Ela meneou a cabeça negativamente e disse, sem me olhar: “Eu vim por minha conta. Ele estava muito nervoso... Jogou os pratos no chão, quebrou os copos na parede, me falou coisas horríveis...”. “E você não vai fazer nada”, afirmei já sabendo que a réplica seria uma confirmação. “É só uma fase--”, “UM CARALHO QUE É SÓ UMA FASE!!!”. Meu, acho que NADA é pior do que minha mãe acobertar esse desgraçado. TEM UM ROXO DO TAMANHO DE UMA AMEIXA NA CARA DELA E “É SÓ UMA FASE”!
Vi que berrar minha indignação não ia levar aquela conversa a lugar algum, então puxei a cadeira novamente, me sentei e bati o pé, olhando pra ela, esperando que ela falasse alguma coisa ou contasse o que acontecera do jeito dela. Minha avó ao lado, acalentando, e eu olhando friamente, esperando uma explicação. Aos poucos ela começou a falar, e quanto mais ela falava, mais ódio eu sentia. Exatamente como eu havia previsto na última vez em que nos vimos: ele não havia mudado porra nenhuma; estava tudo do mesmo jeito e esse bom mocismo sim era uma fase, que logo logo acabaria e tornaria minha mãe cada vez mais presa a ele com esse terrorismo psicológico contra o qual ela não fazia o menor esforço pra lutar.
Quando ela terminou de contar a história, perguntei o que ela faria a seguir e a resposta não me surpreendeu: “Eu vou voltar pra casa...”. “Você não vai ficar aqui, a salvo, com a vovó? Vai voltar pro covil com o desgraçado?”. “Eu amo o Lúcio, Daniel”. Caderno, eu juro que o “vá se foder” parou na ponta da minha língua. Só não o cuspi porque ainda tenho um mínimo de respeito pela mulher que me pôs no mundo, que me parecia infinitamente diferente da estátua apática que falava comigo naquele momento. Achei melhor ficar mudo. Só balancei a cabeça e me levantei. “Se precisar de mim pra alguma coisa, me liga. Tchau, vó; depois eu volto aqui pra ver a senhora”. Dei de costas e saí. Fui embora.
Cheguei em casa com a cabeça saindo fumaça. Eu tinha vontade de chorar, de raiva, de impotência, de revolta, de sei lá. O Bruno não tava lá pra me ajudar a colocar as ideias no lugar. Sentei no sofá da sala e fiquei pensando em algo que eu pudesse fazer. TINHA QUE TER algo que eu pudesse fazer.
Tive uma ideia.
Fui pro meu quarto, liguei o PC e fui pesquisar sobre violência doméstica e como denunciar. Descobri que a denúncia pode ser anônima e que não é obrigatório que o denunciante seja a vítima. Pronto. Não pensei duas vezes: procurei o número que atende aqui em Taigo e fiz a denúncia. Já que a idiota da minha mãe ia voltar pra casa mesmo, a polícia ia lá investigar, ia ver o roxo no rosto dela e ia ficar, literalmente, na cara que alguma coisa tinha acontecido. Liguei mesmo, sem remorso. Passei nome completo dos dois, endereço e horários em que os dois estão em casa. Aquele monstro não poderia escapar assim tão fácil, não, não se tivesse algo que eu pudesse fazer pra impedir. E eu fiz. Acredito que essas coisas não se resolvam assim de um dia pro outro, mas logo logo eu devo receber notícias dela, dizendo que a polícia esteve lá e que ele vai ser severamente punido pelo que está fazendo. Se ela não é macho o suficiente pra denunciar, eu sou.
Não perguntaram nada sobre mim. Só confirmaram o recebimento da denúncia e disseram que vão investigar. Me perguntaram se eu queria um tipo de código pra acompanhar as investigações, mas eu recusei, porque sabia que receberia as notícias em breve. Por consequência desse imprevisto, tive que desmarcar o programa com a Helena. Ficou pra amanhã. Eu não tinha cabeça pra transar hoje, nem com mulher, nem com homem nem com ninguém. Desliguei meu celular de programa e fiquei na minha. Nem com o Bruno eu não conversei muito. Fui pro quarto dele e a gente ficou na cama vendo TV em silêncio. Uma das coisas que eu amo no Bruno é que ele sabe exatamente quando é hora de não falar nada. Hoje foi um dia que eu não queria ouvir nada; só queria estar perto de alguém, mas em silêncio. Só agora há pouco dei um beijo de boa noite nele e vim pro meu quarto escrever. Não fui pra faculdade, pra variar. Não tava com cabeça. Daqui a pouco vou ter que oferecer sexo pros meus professores não me reprovarem por falta. Não tá fácil não, caderno. Não tá. Vou dormir agora. Amanhã, de qualquer forma, volto pra falar da Helena, como prometido. Fica na paz. Um abraço.
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Vincent (romance gay)
General Fiction::: LIVRO COMPLETO ::: Daniel é um jovem de vinte e um anos que mora com a mãe e com o novo padrasto em um bairro de classe média da cidade fictícia de Taigo. Daniel leva uma vida tranquila, mas essa tranquilidade logo é abalada quando o jovem per...