Entrada XXIV

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Bom dia

Acordei cedo hoje e me deu vontade de vir aqui escrever. Tava dando uma olhada nas entradas anteriores, especialmente na última, e cheguei à conclusão de que estou muito, muito carente. Mais do que eu me lembre de ter estado alguma vez. Mas, veja só, não é culpa minha: eu não tenho pai, não tenho mãe, mal tenho ido à faculdade, não tenho namorada, transo com caras por dinheiro e, quando vou ver... quem é que eu tenho pra cuidar de mim, ou pra me fazer sentir querido, ou pra me abraçar, ou sei lá? Só o Bruno!

Ah, acho que pulei etapas aqui. Eu já estou bem. Meu corpo parou de doer, o roxo no meu olho já está perceptível só pra mim, a cicatriz na têmpora não ficou tão feia e estou quase gostando desse cabelo curto. Não precisa passar gel, não precisa pentear, não precisa fazer nada: acordo e ele tá pronto. Gosto de praticidade. Gasto menos dinheiro com gel, também. O Bartô também gostou (a gente se viu anteontem, mas foi rápido, que a mulher dele ainda tá no pé). Mas eu percebi que estou carente, e pra eu ter percebido isso, a coisa deve estar séria mesmo, não é? Geralmente as pessoas não percebem ou não admitem que são/estão carentes, e eu estou assumindo isso sem protestar. Daí, novamente, voltamos ao Bruno. Tá acontecendo uma coisa engraçada — pra mim, pelo menos, tá engraçado: aqui em casa, em vez de o hetero evitar o gay, o gay evita o hetero (estou usando esses termos de forma bem estereotípica, só pra ficar claro). Talvez “evitar” não seja a melhor palavra, mas eu vou explicar e você vai entender.

Dia desses, eu estava na cama dele, como sempre. Desde que eu e o Bruno ficamos mais amigos do que éramos antes de morarmos juntos, a gente se toca. “Se toca” assim: aperto de mão, abraço, beijo no rosto, dormir junto de vez em quando, essas coisas; nada de mais. Quando eu vim pra cá, isso continuou; sem problemas. Depois do beijo que rolou, porém, ele deu uma ligeira esfriada. É claro que a gente ainda se toca, mas percebi que a frequência diminuiu e não foi por minha culpa: foi dele. Claro, também, que não falei nada, não cobrei, não fiquei chateado; só percebi — e ele deve saber que eu percebi também, que eu e o Bruno às vezes não precisamos conversar pra nos fazermos entender. E aí eu estava no quarto com ele, na cama, assistindo TV antes de dormir, algo que acontece praticamente todas as noites. Ele deitado de barriga pra cima de um lado e eu deitado de lado do outro, e entre nós um espaço que cabia mais uma pessoa. Em dado momento, olhei pra ele e me deu vontade de abraçar, de fazer carinho — não por ser com ele, mas porque deu vontade mesmo. Cheguei um pouco mais perto e passei meu braço por cima da barriga dele. Ele olhou pra mim com uma cara desconfiada. “Quê?”, perguntei. Ele não respondeu. “Tô te achando muito distante”, continuei, jogando verde. “Tô do seu lado, na mesma cama que você”, ele respondeu. “Então vem cá; preciso de carinho”.  E era verdade. Acho que todo mundo precisa de fazer/receber carinho de vez em quando, e só o Bruno tem feito isso por mim, e, desde que a gente se beijou, ele praticamente parou. Meio hesitante, ele veio e passou o braço por debaixo do meu pescoço e só. Me ajeitei no ombro dele e fiquei passando a mão pelo peito e pela barriga dele, de leve. E ele nada. “Cê tá muito ruim de carinho, Bru”, eu disse. Sem responder, ele me deu dois tapinhas na cabeça e ficou me fazendo um cafuné muito medíocre. Daí sucedeu o debate:

— Qual é, Bruno?

— Qual é o quê?

— Parece que cê tá com medo de encostar em mim.

— Impressão sua.

— Não é, não. Que que tá pegando?

— Só acho que isso não é muito boa ideia.

— Por quê?

— Porque nós somos dois caras.

— Ué, e daí? Você não tá em paz com a sua sexualidade?

— Não é isso.

— Então o que é?

— O corpo humano reage, Daniel, e você, cheio de carinho pro meu lado--

— O quê? Você tá com vergonha de ficar de pau duro? Eu não ligo.

— Eu ligo.

— Por quê?

— Porque sim. Se coloca no meu lugar. Imagina uma amiga gostosa sua deitada do seu lado te pedindo carinho e--

— Cê tá me chamando de gostoso?

Nessa hora eu me afastei e me apoiei nos cotovelos pra olhar pra cara do Bruno, que estava vermelho feito um tomate. Dei risada e comecei a fazer cócegas nele. Bruno detesta cócegas. Ele ficou se contorcendo e falando pra eu parar, segurando o riso, mas achei o máximo ele ter dito aquilo. Minha auto estima anda meio baixa; eu tava precisando mesmo ouvir umas coisas assim. Depois deitamos de novo, ombro com ombro, e a conversa continuou:

— A gente pode se beijar de novo, se você quiser.

— Para, Daniel. Eu não posso querer essas coisas.

— Por que não?

— Porque você não é gay e nós somos amigos.

— Em três meses eu comi mais caras do que você comeu sua vida inteira.

— Poupe-me.

— Tenho sido mais gay do que você, ultimamente. Isso não conta?

— Você tem sido um objeto, mais do que eu jamais serei. E eu não quero te usar.

— Eu deixo.

— Eu não quero.

— Tá: então, se você não quer, não temos com o que nos preocupar, já que nada vai acontecer. Assim sendo, posso te fazer carinho o quanto eu quiser — e você pode fazer o favor de retribuir, afinal seu amigo Daniel está extremamente carente e você é a única pessoa que ele tem pra compensar isso.

Touché...

Bruno é uma figura. Ele se preocupa demais com umas coisas que não carecem de tanta preocupação — e não me refiro só a essa situação, não, mas a outras coisas da vida também, tipo conta que atrasa dois dias pra pagar, o gás que está pra acabar, prova na faculdade, que ele sabe a matéria de trás pra frente mas, ainda assim, se mata de estudar... Essas coisas. Depois dessa conversa, senti que ele ficou mais tranquilo em relação a nós dois. No dia dessa conversa, dormi com ele de novo, mas acho que, pra ele, não deve ser muito bom dormir comigo, não: eu sou meio espaçoso. Ele dorme quietinho; eu me esparramo de qualquer jeito. Só fico quieto quando ele tá no meu ombro ou eu tô na parte de dentro da conchinha.

Mudando de assunto: amanhã vou trancar a faculdade. Decidi. Ainda não sei se ou quando volto, mas, por ora, a faculdade tá no meu caminho. Vou começar a juntar dinheiro. Ainda não sei pra que, mas vou. Sinto que, num futuro próximo, quando eu sair dessa vida, eu vou precisar de grana pra voltar pra vida “normal”. Talvez eu compre uma moto ou invista em alguma coisa... Sei lá. Também vou ligar meu celular de programa de novo e voltar ao trabalho. Chega desse negócio de ficar na merda; [motivacional]tá na hora de dar a volta por cima[/motivacional]. Amanhã eu começo. Aliás, comecei a ler “O Apanhador no Campo de Centeio”. Não sei você, mas estou achando o protagonista meio gay. Que que cê acha? Depois me conta. Vou ali tomar café. Falou!

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora