Entrada XXXVI

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Fala, caderno...

Ai ai... Como você tá? Espero que a sua semana tenha sido melhor que a minha. Que semaninha de merda, cara... Não pra mim, exatamente, mas pras pessoas que fazem parte desta história que mal parece real. Vamos por ordem:

Primeiro, minha mãe me ligou. Geralmente ela não me liga, já devo ter dito isso em algum momento aqui; nos falamos por mensagem, na maior parte do tempo. Já faz umas semanas que eu não a vejo — desde o casamento da Monique (?) AH! Não; faz menos tempo. Ela esteve aqui quando o desgraçado contou a ela que eu faço programa, ora! Bem, atendi e ela disse que queria me ver. Dessa vez, por algum motivo que eu ainda não identifiquei, eu não me opus. Ela sugeriu que a gente se encontrasse na casa da minha avó, de quem eu também estava com saudade. Isso foi logo no início da semana. Fui pra almoçar e passar a tarde. Minha vó preparou uma galinhada sensacional, que eu comi até engordar. Passamos a tarde juntos e, por incrível que pareça, não brigamos. Deve ser porque não falamos sobre o desgraçado em momento algum, e minha mãe parecia estar relativamente bem. Depois que saímos da casa da minha avó, fomos tomar sorvete na sorveteria do shopping. “Queria me desculpar com você, Dan”, ela disse pouco depois que chegamos. “Por quê?”, perguntei. Os motivos possíveis eram tantos... “Pela minha atitude na casa do Bruno...”. Isso era motivo o bastante, de fato. Aceitei as desculpas, e logo ela acrescentou: “Mas eu quero entender essa história direito”. Ela não falou em tom de cobrança nem nada: falou com humildade. Percebendo isso, me dispus a explicar o que ela quisesse entender. Minha mãe é histérica e idiota pra umas coisas, mas não é quadrada nem ignorante. Fui explicando as coisas que ela me perguntava — na verdade  não tinha muito o que explicar; eram mais questões de curiosidade e preocupação dela. “Você faz sexo com homens, meu filho... Você é o quê? Gay? Bissexual? Você nunca me falou nada...”. Pergunta complexa. Eu perderia muito tempo tentando fazê-la entender o que se passa na minha cabeça. O que consegui responder honesta e satisfatoriamente foi: “Relaxa, mãe, eu ainda gosto de mulher”, e daí eu fiquei pensando: por que é que o que eu faço na cama com quem quer que seja importa tanto assim? Meu, e daí que eu transo com caras? E daí que eu comeria o Felipe quando ele quisesse, assim como comeria a irmã dele, ou os dois juntos? Sabe? Acho que esse mundo nosso tá precisando de um reboot. Enquanto isso não acontece, a conversa com a minha mãe continuou e, pela primeira vez desde que saí de casa, passei um tempo de qualidade com ela, em paz. Isso me fez bem, eu acho, mas depois fiquei me sentindo meio órfão, por tê-la tão perto e tão longe ao mesmo tempo.

Depois, no meio da semana, o Paulo me ligou. Perguntou como estava minha agenda e disse que queria me ver. É estranho: depois que comecei a fazer programa, me parece que as pessoas têm receio de entrar em contato comigo, como se estivessem roubando meu precioso tempo... Ele queria me ver e ofereceu dinheiro por isso; não pelo sexo que ele claramente não quereria fazer, mas pelo meu tempo, como se eu fosse cobrar só pra fazer uma visita! Vê se pode! Bom, combinamos de eu ir na casa dele mesmo. Isso foi à noite. Ele me buscou aqui e nós fomos. Ele disse que não estava a fim de cozinhar e me perguntou o que eu queria comer. Senti um quê de tristeza nele. Acabamos pegando uma pizza durante o trajeto. Quando chegamos na casa dele, comemos, bebemos vinho, conversamos e ele me olhava com um olhar distante. “Cê não tá bem hoje”, afirmei. Ele sorriu. “Tá tão na cara assim?”, ele perguntou, e eu respondi que sim. “É aquele rapaz que se parece você, que eu amei no passado... Lembra?”. Claro que eu me lembrava. “Hoje seria nosso aniversário de namoro...”. Olha como a vida me coloca numas saias justas. “Mesmo?”, foi o que consegui dizer. Ele meneou a cabeça afirmativamente. Aí me dei conta de que não sabia da história desse tal doppelgänger. “Me fala sobre ele...”, pedi. O olhar dele se perdeu em algum ponto da mesa e as mãos se cruzaram em frente ao rosto. Ele começou a contar a história e, em pouco mais de meia dúzia de frases, percebi as lágrimas brotando dos cantos dos olhos dele. E quase que eu chorei junto, que a história era triste. Eles tinham minha idade quando estavam no auge da paixão. Até que, um dia, out of the blue, Ítalo, o rapaz, anunciou que estava indo para o exterior por um programa de intercâmbio e simplesmente desapareceu da vida do Paulo sem deixar qualquer vestígio. Como nenhum dos dois era assumido na época, Paulo não teve como entrar em contato com ninguém pra descobrir o paradeiro do cara... Disse ele que passou três anos tentando encontrar o rapaz e descobrir o que havia o levado àquela atitude, mas essa busca nunca trouxe qualquer resultado, e esse parágrafo ficou em aberto na vida dele. Eu não sabia o que dizer, só torci pra ele não chorar, porque não posso ver ninguém chorando que eu choro junto.

Quando fomos levar os pratos pra cozinha, dei um abraço nele e senti um soluço, mas ele segurou e não chorou. Ficamos abraçados um tempão; depois ele se afastou e me olhou no fundo dos olhos, como se eu fosse o Ítalo. “Posso te beijar?”, ele pediu, sem tirar os olhos dos meus. Senti meu rosto corar. Repare que minha lista de caras beijados só cresce. Mais um, menos um... Que diferença faz? Aceitei. Ele me beijou devagar, com cuidado, como se beija pela primeira vez quem se ama. Sensação estranha. E foi bom; foi bastante... sentimental, eu diria. Eu ainda não sei como é beijar alguém que se ama, mas, pelas reações do Paulo, deve ser um negócio fora de série. E o beijo dele foi diferente dos outros também. O Bruno, o Felipe e o Bernardo têm, todos, mais ou menos a minha idade. O Paulo é consideravelmente mais velho que eu. Não sei dizer, exatamente, o que é diferente, mas tem uma diferença. Na textura da pele, talvez, no jeito de abraçar, no cheiro... Tô ficando entendido demais desse assunto pro meu gosto. Ele insistiu porque insistiu que eu aceitasse um pagamento pelo beijo, e eu recusei o quanto pude. Como ele não pararia de insistir, aceitei o dinheiro. Quando fui embora, ele esperou eu entrar no elevador e só aí nos despedimos de vez. Entrei no elevador, apertei o botão do andar debaixo do que eu estava, desci, voltei pro andar de cima pelas escadas e passei o dinheiro por debaixo da porta do Paulo; aí vim embora. Mais teimoso que o Bruno, esse cara.

Falando em Bruno, hoje foi a vez dele. Tadinho... Acho que ele não devia ter ido àquela festa. A conversa que ele e o Otávio tiveram não fez nada bem pra ele. Esse negócio de “estamos bem”... tudo papo furado: o moleque tá numa fossa de fazer dó. Cheguei no quarto dele e ele tava deitado de costas pra porta. Deitei ao lado dele e fiquei quieto, assistindo o jornal. Primeiro pensei que ele estivesse dormindo, tanto pela posição quanto porque ele não estava olhando pra TV, mas logo percebi ele tentando disfarçar aquelas sugadas de nariz que a gente faz quando tá chorando. Daí parei pra prestar atenção e os ombros dele davam uns espasmos, tentando controlar a respiração. Nunca vi o Bruno chorando, cara; aquilo me partiu o coração. Abracei-o por trás, sem dizer nada, que nessas horas basta perguntar “O que foi?” que a pessoa desaba a chorar, e se ele começasse a chorar eu choraria junto. Ele se encolheu e eu permaneci em silêncio, e ele tentando controlar o choro. “Não chora, cara...”, eu disse. Acho que esse é o conselho mais idiota que alguém pode dar, porque quanto mais você pede que alguém não chore, mais esse alguém chora. As pessoas deveriam dizer “Chora, cara, chora mesmo que faz bem”. Esse seria um conselho mais sincero e eficiente, e foi o que o Bruno fez, mesmo sem eu ter dito. Tadinho... “Vem cá”, eu disse, puxando-o pelo ombro. Ele não hesitou: virou-se pro meu lado e me abraçou, repousando a cabeça no meu peito. Aninhei-o num abraço meio desajeitado, mas sincero. Nunca vi o Bruno daquele jeito, cara. Ele chorava feito criança, e me partia o coração não poder oferecer nada além de um abraço (e eu consegui não chorar junto, ok?). Ah, e, não sei se ficou claro, mas aquilo que existia entre a gente acabou, seja lá o que tiver sido. Acho que eu me apaixonei momentaneamente, ou pensei estar apaixonado por causa do ciúmes, ou, ainda, porque estava abalado com a porrada que o desgraçado mandou me darem. Acho que confundi muitas coisas e o resultado foi aquele. Já não sinto mais aquela vontade de beijá-lo em 80% das vezes que o vejo (mas ele continua sendo minha alma gêmea, diga-se). E, vendo ele desse jeito, o Paulo daquele, a situação em que a minha mãe se colocou, passo a ter minhas dúvidas quanto a esse negócio de amar. Não sei quero mexer com isso, não, caderno. Olha o que esses três passam por causa disso. Todo mundo chorando, todo mundo sofrendo... Sei se quero isso pra mim não, hein?

Bom, eu me ofereci pra dormir com o Bruno, mas ele não quis. Deve ter ficado com vergonha. Eu respeitei. Vim pra cá escrever... Amanhã vou ver o vovô voyeur de novo (quanto v). Não sei se ele vai querer que eu fique com a Clarissa novamente ou com alguma outra, mas acho que vamos pro tal do “canil” mesmo. Já que eu custei a ele uns dólares a mais, decerto ele vai querer fazer jus a esse dinheiro. Depois passo aqui pra contar como foi. Torce pelo Bruno aí, cara; ele tá precisando. E torce pra próxima semana ser menos tensa do que esta, porque ó, o negócio foi triste. Literalmente. A gente se fala. Se cuida.

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora