Entrada XXIII

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Fala, caderno...

Como você tá? Espero que esteja melhor do que eu... Dei uma sumida daqui, eu sei... Desculpa; é que eu não tive condições físicas nem emocionais de escrever nos últimos dias... Parece que, depois da última vez que passei por aqui, eu piorei em vez de melhorar. Agora não sei dizer como eu tô. Meu corpo já quase não dói, mas, por dentro, eu ainda me sinto dilacerado. Nunca me senti tão humilhado, tão indefeso, tão reduzido a nada... E saber que o desgraçado está por trás disso e eu não posso provar nada faz uma mistura de ódio e dor correr pelas minhas veias e sentir uma vontade imensa de gritar, de esmurrar a parede, de jogar tudo no chão, de matar aquele monstro que eu me recuso a falar o nome a facadas. É só nisso que eu tenho pensado: vingança, ódio, crueldade, sangue, morte... Mas como essas coisas só podem acontecer dentro da minha cabeça, tudo que eu efetivamente faço é chorar. Nunca chorei tanto na minha vida. Vê só? Estou chorando agora, enquanto escrevo. Sinto que isso tudo que aconteceu destruiu a parte bonita que existia em mim. Eu não consigo pensar que amanhã eu vou acordar e voltar a ver o mundo como eu via até o mês passado. Porque toda vez que eu olhar pro espelho e vir essa cicatriz na minha têmpora eu vou me lembrar de que o desgraçado existe, e eu não consigo imaginar que possa existir felicidade pra mim novamente sabendo que nós dois habitamos o mesmo planeta.

Nesses últimos dias, não tenho feito nenhum programa. Coloquei no Face que estava passando por uns problemas e que avisaria quando voltasse. Desliguei meu celular de trabalho e o normal também, porque minha mãe não parava de me ligar e isso também estava me fervendo o sangue. A culpa é dela. Se ela não tivesse mentido pra polícia, nada disso teria acontecido, e o desgraçado poderia estar preso agora.

Por causa desse estado de miséria, faz uns dias que eu mal vejo a luz do sol. Passo a maior parte do tempo trancado, no quarto, deitado de olhos fechados ouvindo música ou passeando pelo YouTube ou simplesmente chorando. Me sinto um idiota por isso, mas não consigo lutar. As únicas coisas que eu tenho feito direito são as tarefas aqui de casa. Lavar a louça, limpar o chão, essas coisas. O Bruno não gosta que eu fique fazendo esforço, mas eu insisto... Cara, o Bruno tem sido minha rocha. Eu fico me sentindo duplamente patético, primeiro por não conseguir sair desse poço sem fundo e segundo porque ele me trata com tanta atenção, tanto cuidado...  Sempre me pergunta se eu tô bem, se tô sentindo alguma dor, se preciso de alguma coisa... Bruno é muito paternal. Ele andou até matando umas aulas depois do almoço pra vir mais cedo pra casa e não me deixar sozinho. Demais, né?... E ontem rolou uma cena...  Rolou um beijo, cara, entre mim e o Bruno.

Ontem eu tava na merda. Muito. Fui pro quarto dele assistir TV (tem TV na sala e no quarto dele, no meu não) antes de ele chegar da rua. Eu sempre faço isso; ele não liga. Ele chegou e me viu lá, deitado em posição fetal assistindo desenho animado. Uma criançona babaca, eu. Ele me cumprimentou, perguntou se eu estava bem e eu respondi que sim por padrão, mas não tava nada bem. De todos esses dias em que estou mal, acho que ontem foi o pior. Eu já tinha chorado um monte antes de ele chegar, e quando ele chegou me veio mais um nó na garganta. Ele se sentou ao meu lado e fez carinho no meu ombro antes de tirar o tênis. Eu estava de costas pra ele; não queria que ele me visse com aquela cara amarrotada. Ele me perguntou se eu tinha comido alguma coisa e eu disse que não — e não mesmo; estava só com um pão e uma xícara de café na barriga desde que saí da cama. Então ele foi até a cozinha e voltou com um saquinho de pão de queijo e uma garrafinha de iogurte de mamão, maçã e banana, duas coisas que ele sabe que eu adoro. Sorri e agradeci. “Eu vou tomar banho e você trate de comer logo”, ele disse, “senão vai acabar ficando doente”. Ele foi e eu comi. Meu estômago doía de tão vazio, mas eu não sentia vontade de comer; comi o que ele trouxe mais por gratidão do que por necessidade fisiológica.

Depois de uns vinte minutos ele saiu do banho. O Bruno já sai do banheiro vestido; acho um barato. Fiquei olhando ele enxugar o cabelo, só por olhar mesmo. É bonito o cabelo dele; parece cabelo de gente rica, eu falo pra ele. “O que que cê tá vendo aí?”, ele perguntou, deitando-se ao meu lado com as pernas esticadas, uma sobre a outra. A presença dele é muito tranquilizadora. Não conheço ninguém mais sossegado que o Bruno... Queria eu estar assim. “Nada de mais; pode mudar de canal”, respondi, mas ele recusou. Cocei os olhos e esfreguei o rosto pra ver se passava aquela inhaca. Me virei, então, pro rumo dele, e fiquei o olhando por uns segundos. Depois ele olhou pra mim e nós ficamos nos olhando, em silêncio. Fiquei sem graça e sorri, e ele sorriu do meu sorriso e passou a mão no meu cabelo e eu ri baixinho e baguncei o cabelo dele, e ele riu comigo. Ele passou o braço por debaixo do meu pescoço e me trouxe pra ele, aí nos abraçamos. Foi a primeira vez que ri depois do que aconteceu. E naquele momento, no meio de tanta coisa ruim, eu senti algo bom. E, ao me dar conta de que, agora, meu “algo bom” se reduzia a um riso depois de dias de choro, meu peito se encheu de luto de novo. Bruno viu minha expressão mudar e eu saí dos braços dele. Minha sensibilidade tá à flor da pele, caderno; qualquer coisinha eu choro. Tá foda. E eu não queria ficar nesse clima perto dele, então saí de cima meio bruscamente e me deitei na cama com a barriga pra cima de novo. “Que foi, cara?”, ele perguntou. “Não, nada”, eu respondi sem muita verdade. Ele se deitou de lado na cama e se aproximou de mim novamente. Colocou uma mão sobre o meu peito e voltou a me olhar. Não precisava perguntar o que foi, porque ele já sabia. “Vai ficar tudo bem”, ele disse. Olhei pra ele de novo sem muita fé. “Não sei, Bru...”, respondi, “Eu tô sentindo um negócio tão ruim... uma angústia... um desamor...”, e meus olhos começaram a encher de água. Eu tô uma moça, não nego nem tento. “Que desamor, cara? Eu tô aqui contigo, pô...”, ele disse em voz baixa, mexendo no meu cabelo mais uma vez, tentando me confortar. E, ouvindo o que ele disse, eu senti uma vontade tão grande de dar um beijo nele... Mas tão grande...

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora