Entrada VI

3K 329 24
                                    

Não sei nem por onde começar. Minha vida virou de cabeça pra baixo da pior maneira que se possa imaginar nos últimos três dias. Não sei por onde começar. Vou começar pelo começo. Não, não dá; o começo você já sabe. Vou ter que começar pelo final. Tá, resumindo: fui expulso de casa. Eu não sei qual expressão é melhor, se é expulso, se é posto pra fora, se é despejado, se é jogado pra fora feito um saco de merda... Você escolhe.

Tá bom, vamos por partes: como eu havia dito na última vez em que escrevi, o Lúcio estava (ainda está) mesmo envolvido com bebida alcoólica. Naquela de não saber o que fazer, acabei ficando quieto, sem fazer nada. Os dias foram passando e as cenas foram se repetindo, só que cada vez com mais frequência. E as brigas foram ficando cada vez piores, e eu percebi que o nível também estava ficando cada vez mais baixo. Mas era minha mãe que começava. Chamava ele de canalha, pilantra, desgraçado—tem palavra mais horrorosa que essa?— E ele, igualmente, começou a ofender também, e isso já foi me irritando. O Lúcio não é nada meu; minha mãe pode chamá-lo do que quiser, mas a Leonor é minha mãe; não aceito que a chamem de nenhum termo pejorativo que seja. Ainda assim, segurei minha onda e não intervim. Dia desses, estávamos jantando e eles começaram a brigar na minha frente. “Quando é que vocês vão parar com essa lavação de roupa suja quase todo dia, hein?”, perguntei. E o Lúcio me respondeu: “Não se meta, que isso não é da sua conta”. Desde que conheci o Lúcio, ele foi muito legal comigo e pra mim. Essa foi a primeira vez, desde que eu me lembre, que ele me deu uma resposta atravessada. E o que mais me incomodou não foi isso, mas a minha mãe não ter partido em minha defesa. Ela ficou calada, feito uma estátua, e eu fiquei tão surpreso que não soube o que responder. Terminei de comer quieto e voltei pro meu quarto. Depois, nem ele veio me pedir desculpas nem minha mãe veio falar qualquer coisa; ficou todo mundo quieto.

Bom; passou. Isso foi o quê? Final de semana passado. O clima lá em casa já estava super chato, e eu evitava ficar lá o máximo possível, mesmo quando o Lúcio não estava. Ainda bem que eu o via pouco, já que ia pra faculdade mais ou menos na mesma hora em que ele chegava em casa. Assim foi indo, até anteontem, que foi a gota d’água. Eu acho que ele não estava bêbado. Pelo menos parecia não estar. Eu tinha ido pra faculdade só fazer uma prova nos dois últimos horários. Saí de casa por volta das oito; ele ainda não tinha chegado. Fui, fiz a prova, troquei uma ideia com a galera, saímos pra beber um pouco, depois, e antes da meia-noite eu já estava voltando. Quando cheguei em casa, assim que abri a porta da sala comecei a ouvir gritos. Minha mãe é meio histérica por natureza, mas daquela vez eram gritos de outro tipo: eram uns ais que ela geralmente não emitia, e logo vieram junto uns “Pára! Pára! Pelo amor de Deus!”. Quando ouvi aquilo, larguei minha mochila em cima do sofá e fui correndo até o quarto deles pra saber o que estava acontecendo.

Eu não sei nem explicar o que aconteceu comigo. Sou um cara muito tranquilo, mas quando vi minha mãe imobilizada debaixo dele e ele pronto pra desferir um (que eu não sei se seria o primeiro ou segundo ou quinto) soco no rosto dela, eu imediatamente voei pra cima dele feito um animal selvagem. Minha mãe rolou pro outro lado da cama e eu e o Lúcio rolamos pro chão, e lá ficamos nos enforcando e esmurrando, e minha mãe gritando sem parar e o Lúcio me vencendo (é claro, porque ele tem quase duas vezes o meu tamanho) e não demorou muito pra ele me jogar pra longe, se levantar rapidamente, ir até a cômoda, pegar uma arma dentro da gaveta, apontá-la pra minha cara e dizer “Some da minha frente! Agora!”. É lógico que ele não ia atirar, mas ver uma arma apontada pra mim foi a coisa mais aterrorizante que já me aconteceu. Saí do quarto e voltei pra rua. Tinha deixado a porta da sala aberta. Mais um pouco e eu acho que algum vizinho teria entrado pra ver o que estava acontecendo. Nada aconteceu, infelizmente. Teria sido o flagrante perfeito.

Sei que saí correndo e sem rumo. É óbvio que eu não ia voltar pra casa naquele dia. Fui pra casa do Bruno, que era o que estava mais perto, expliquei o ocorrido muito rapidamente, ele falou que era pra eu ir à delegacia prestar queixa, eu o lembrei de que o Lúcio era o delegado e ele me deixou passar a noite por lá. Não consegui dormir depois disso. Só tive umas horas de sono, vencido pelo cansaço, quando estava amanhecendo. Acordei com o Bruno fazendo almoço. Me senti mal... Me olhei no espelho e percebi que o Lúcio me deixara uns bons roxos. Mas eu também acertei uns nele; disso eu tenho certeza. Almocei na casa do Bruno e, no finalzinho da tarde, voltei pra casa. Espumando de ódio, ainda, mas eu tinha que voltar, mais hora, menos hora, né? Fui de ônibus. Cheguei e vi o carro do Lúcio e mais um outro que eu não conhecia parado logo atrás. Quando entrei, estavam o Lúcio e a minha mãe sentados na sala, como se soubessem que eu estava prestes a chegar. O Lúcio de terno preto, parecendo segurança de boate, e minha mãe no outro sofá. Foi só me ver e ela começou a chorar de novo. O olho esquerdo dele estava roxo, eu percebi. Os dois ficaram me olhando com umas caras que eu não sabia explicar. E eu parado. “Suas malas estão prontas”, o Lúcio disse. Perto da escada havia três malas grandes de viagem. “A partir de hoje você não mora mais nesta casa”, ele continuou. Meu mundo caiu. Na hora. Fiquei olhando pro Lúcio, pra minha mãe, praquelas malas, e não consegui dizer nada. “O motorista lá fora vai te levar pra onde você for”. Como se eu tivesse pra onde ir. E minha mãe chorando. “VOCÊ não vai fazer nada?”, perguntei a ela. “Não vai, não”, o Lúcio respondeu antes dela. “E se você abrir o bico sobre o que aconteceu aqui ontem, eu mato você e sua mãe”. Eu estava com tanta raiva, tanto ódio daquele cara e da minha mãe por ela não fazer nada além de chorar, que eu acho que a ameaça passou despercebida. A minha mãe, a minha própria mãe assistiu o cara com quem ela se casou ameaçá-la e o filho dela de morte, de morte!, e não moveu um dedo pra falar ou fazer qualquer coisa. Isso, pra mim, foi inadmissível e bem imperdoável. Sem contar que deve ter sido ela mesmo que arrumou minhas coisas naquelas malas. Não gosto nem de lembrar porque o ódio volta a subir pelas veias. “Sua mãe vai mandar entregar o resto das coisas quando você tiver arrumado um lugar fixo”. Ele falava com a maior frieza. Desgraçado.

Estou me estendendo muito. A ópera foi essa. A casa é dele, minha mãe é uma idiota submissa, fomos ameaçados de morte, fui expulso de casa e agora estou aqui na casa do Bruno. Parte das minhas coisas ainda está lá. No dia seguinte, ela me ligou, chorando, como sempre, e, olha, francamente? Não me comovi. Diz ela que o Lúcio autorizou que eu fosse visitá-la quando ele não estivesse na casa. Parece que o bandido sou eu. Perguntei muito ironicamente se ela não pretende denunciar esse monstro e ela disse simplesmente que não; que não há nada que ela possa fazer. E, pela conversa, não é a primeira vez que isso acontece. Certamente não será a última. Agora estou aqui, dormindo num colchão na casa do Bruno, sem minhas coisas, sem meu computador, sem emprego, sem casa... Eu não sei o que vou fazer da vida agora. Acho que a ficha ainda não caiu. Eu não sei por quanto tempo vou ficar aqui; já estou me sentindo um incômodo, mesmo sendo só a segunda noite. O Bruno é um anjo, um amigo maravilhoso; jamais me falaria nada, mesmo se eu estivesse tirando o espaço dele, mas eu tenho senso e sei que não posso nem vou demorar aqui. Preciso acelerar as coisas; tenho só mais três meses de seguro desemprego e recebo a antepenúltima parcela mês que vem... Deus do céu. Tô muito, mas muito na merda. Me dá uma luz. Vou dormir agora. Amanhã é um novo dia. Boa noite.

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora