Entrada XLV

1.7K 201 17
                                    

É, meu amiguinho caderno, não tem jeito: eu tento te poupar e te gastar menos do que eu gostaria, mas não dá: minha vida é uma brisa de primavera pra cada dez furacões arrasadores — e não, não estou exagerando; você sabe que eu não exagero.

Ontem de manhã, mais ou menos 10h, estava eu tranquilo aqui em casa quando meu celular toca — o pessoal, não o de programa. Número fixo, chamada a cobrar. Atendi e quem era? A Clarissa! Meu coração deu um pulo de alegria! Clarissa era a última pessoa de quem eu esperava receber uma ligação. Atendi bastante entusiasmado, mas ela, como sempre, falava com aquela aparente indiferença. Gastando bem poucas palavras, ela perguntou se podia me ver ainda ontem. É claro que eu aceitei mais do que imediatamente. Combinamos de nos encontrar na hora do almoço em um dos shoppings aqui da cidade. Eu estava muito feliz, sinceramente; ainda não sei por que, mas queria muito vê-la!

Bruno tinha saído. Arrumei a casa enquanto ele estava na rua, deixei o almoço ajeitado pra quando ele chegasse, já que eu não ia almoçar em casa, depois fiquei mais um pouco no computador fazendo hora até as onze, quando comecei a me trocar. O shopping onde a gente marcou de se encontrar não é dos maiores, mas é legal. Depois que eu e os meninos voltamos da praia, começou a chover por aqui; com isso, o tempo deu uma boa esfriada. Não tá assim tão frio hoje, e não estava ontem também, mas coloquei uma jaqueta mesmo assim, caso precisasse. Fui pro shopping de ônibus, que eu gosto de andar de ônibus. Cheguei e fui direto pra praça de alimentação (aliás, acho que vou comprar uma camisa que vi na vitrine da Brooksfield; muito da hora!). Chegando lá, procurei Clarissa e não a encontrei. Sentei-me em uma das mesas que ficavam mais perto da entrada da praça e esperei por doze minutos até ela chegar. Linda! Como ela é linda, caderno! Vestia uma blusa de frio rosa clarinho de algodão, calça legging preta e sapatilha. Mal parecia a mulher deslumbrante que eu via no “canil” à noite, mas, ainda assim, continuava exageradamente linda. Nos cumprimentamos só com os olhos e com um semi-sorriso. Ela parecia outra pessoa quando “desmontada” — já falei que, ainda assim, continuava linda? Perguntei se ela queria escolher o lugar onde a gente ia almoçar e ela disse que tanto fazia. Já que tanto fazia, sugeri McDonald’s, porque arroz com feijão eu como em casa todo dia. Ela aceitou, então fomos fazer nosso pedido e nos sentar numa das mesas da praça, que, àquela hora, estava bem cheia.

Comemos, o tempo praticamente todo, em silêncio. Eu queria conversar, saber sobre ela, dizer o quanto eu estava feliz por ela ter me ligado... mas ela só olhava pro lanche e não dizia nada; respondia minhas perguntas com “sim” ou “não”, sempre com aquele olhar que a mim não dizia nada, mas parecia esconder um mundo, e não se esforçava pra ser legal comigo. Quando terminamos de comer, ficamos sentados um de frente pro outro em silêncio por algum tempo, ainda sem ter tido qualquer diálogo produtivo. Em dado momento, então, repeti, com outras palavras, algo que eu já havia dito: “Mas que bom que você me ligou. Fiquei feliz!”. Então ela sorriu pela primeira vez, mas um sorriso de dúvida, não de alegria. “Você não sabe de nada, não é?”, ela perguntou afirmativamente, me olhando fundo nos olhos, e eu não fazia a mais pálida ideia do que ela estava falando. “Como assim? Não sei nada sobre o quê?”, perguntei, ao que ela respondeu: “Sobre o canil”. Eu sabia que lá é algum tipo de Clube do Bolinha onde rola uma prostituição, se era isso que ela queria saber. Pedi pra ela ser um pouco mais específica, mas ela só me rebatia com mais perguntas: “Você tá falando a verdade? [oi?] O JP não te contou nada? Como você conseguiu acesso ao canil? Você não sabe mesmo do que eu tô falando?” e por aí foi. Me senti interrogado, sendo que quem estava cheio de perguntas pra fazer era eu. Quando acabou com o estoque de perguntas, ela disse com um sorriso de Mona Lisa: “É... Acho que eu posso confiar em você, mesmo”. Eu sequer sabia que minha confiança estava à prova ali. “Claro que pode!”, exclamei como quem ratifica algo óbvio. Depois de mais alguns segundos brincando com o canudo dentro do copo de refrigerante, sem me olhar nos olhos, ela disse em voz baixa: “Eu fugi”. É claro que aquilo não fez o menor sentido pra mim. “Fugiu? Como assim? Fugiu de onde? E por quê?”, perguntei, e ela respondeu visivelmente impaciente com a minha ingenuidade: “Daniel. Eles chamam aquele lugar de ‘canil’ por um motivo”.

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora