Fala, caderno...
Tudo bem? Espero que sim. Eu deveria estar feliz, eu acho, mas não estou. Na verdade eu não sei dizer o que estou sentindo. É um misto de alívio com alguma outra sensação que eu não sei nomear. Parece culpa, remorso, mas não é; é algo mais superficial, mas que, ainda assim, me tirou um pouco do eixo. Bom, estou tentando explicar, mas acho que não vou conseguir me fazer entender. Vou contar logo o que foi e talvez você tenha uma ideia do que eu tô falando.
Comentei, na penúltima entrada, que o desgraçado tinha sido julgado e condenado por todos os crimes de que o acusaram. Raquel me ligou, uns dias depois, contando que ela e mais duas meninas foram ouvidas. Depois, parece que trouxeram um ou outro cliente do canil pra tentar argumentar que o lugar era “legal” e que nada de criminoso acontecia lá. Não foi o bastante pra convencer a juíza, é claro, nem pra suplantar a gravação em que ele confessava ser o mandante da quadrilha e explicava com detalhe como funcionava a coisa toda. Enfim, não teve jeito: ele foi condenado sem choro nem vela. Poucos dias depois da última vez em que falei sobre esse assunto aqui, ele foi transferido do quartel pra um presídio aqui em Taigo mesmo. Daí minha mãe foi visitá-lo assim que a lista de visitantes dele ficou pronta e depois veio me contar que ele estava muito abatido; que parecia ter envelhecido anos em semanas; que conversava sempre em tom lamurioso, como se estivesse prestes a ou acabado de chorar; como se estivesse arrependido e quisesse voltar atrás... Aquela velha história. Acho que ela o visitou umas duas ou três vezes desde quando ele estava no quartel. É claro que eu não fazia questão nenhuma de saber como ele estava, mas minha mãe me contava mesmo assim e eu deixava. Tenho procurado ser mais paciente com ela, que a vida dela não tem sido fácil.
Minha vida, por outro lado, continuou, muito melhor do que estava, aliás. Continuei atendendo meus clientes, fazendo amor com o Bruno, saindo com os meninos, programando nossa próxima ida à praia... Tudo na mesma, só que sem ter em mente o tempo todo o pensamento de que aquele cidadão habitava a mesma crosta terrestre que eu. Na manhã de ontem, então, recebi da minha mãe uma ligação que acabou, de vez, com esse pensamento: “O Lúcio se matou”.
Suspiro profundo. É. Agora acabou definitivamente. Lúcio não mais caminha entre os vivos. “Se matou?”, perguntei pra ter certeza de que não tinha ouvido errado. “Sim”, minha mãe confirmou. De acordo com ela e com o que saiu nos jornais depois, após menos de duas semanas de reclusão no presídio, Lúcio se enforcou com uma camiseta. O corpo foi encontrado por guardas próximo à pista de corrida da penitenciária. Ele deve ter feito isso pela manhã, creio. Ao lado do corpo dele, acharam uma nota de suicídio escrita em um pedaço de papel almaço, que dizia: “Leonor, pai, mãe: me perdoem. Daniel: nos vemos no inferno. Amo vocês”. “Vocês”, caderno; estou incluído nisso... Quando ouvi e vi isso no jornal eu me arrepiei da cabeça à alma. Por bem ou por mal, esse cara sentia algo por mim; e, por bem ou por mal, eu fui responsável pelo suicídio dele de certa forma. Não se sabe se ele chegou a sofrer abuso sexual na prisão, mas sabe-se que, mesmo saindo de lá, a vida dele estava acabada. Talvez, se ele se comportasse durante o tempo em que ficasse na prisão, ele fosse liberto em treze ou quinze anos, mas, quando saísse, o que é que ele faria da vida? Expulso da corporação, tendo sido preso por todos esses crimes... Que emprego ele teria? Sei lá. Fico pensando essas coisas e sinto pena. Não pena dele, mas pena por ele ter feito tantas escolhas erradas; pena pelos pais dele; pena pela minha mãe... Ele tinha uma reputação aqui enquanto delegado, e recebia um dinheiro bom; não precisava se envolver com crime. O que alivia meu sentimento é pensar que ele fazia isso tudo por ser mau mesmo; por ter poder; por se sentir líder de algo grande... Não sei. É difícil entender as pessoas, ainda mais quando elas estão mortas. E, querendo ou não, poxa, eu fui pra cama com o cara; isso é uma troca de intimidade muito grande, pelo menos pra mim: eu não vou pra cama com qualquer um ou qualquer uma. Sei lá. Tô sentindo um negócio estranho. Ontem à noite foi o velório e, hoje de manhã, o enterro, mas eu não quis ir a nenhum dos dois. Deveria ter ido em respeito à minha mãe, que ficou viúva do segundo marido, mas preferi ficar aqui na minha, mesmo. Acho que vou ficar mais uns dias lá com ela enquanto ela está de luto... Ainda não falamos direito sobre isso e nem sei se é algo sobre o qual quero falar com ela, mas sinto que vai acabar acontecendo, cedo ou tarde.
Há questões burocráticas, ainda, a serem resolvidas, como a casa, os bens, essas coisas. Não sei se minha mãe vai querer ficar com aquela casa daquele tamanho só pra ela (eu não tenho planos de voltar a morar lá, por sinal; estou muito-bem-obrigado aqui com o Bruno), então, provavelmente ela vai vender lá e arranjar algum outro lugar pra morar... Mas não sei; isso ainda tem que ser visto. A única coisa que eu espero do fundo do meu coração é que, se ela pensar em se casar de novo, que escolha melhor o próximo marido, porque esse último...
E é isso. Acabou. Esse capítulo da minha vida se encerrou, definitivamente. Agora é esperar o que o futuro nos reserva. Ainda tô tentando colocar os pensamentos no lugar e encaixar minha vida no eixo gravitacional de novo; talvez leve alguns dias, ou não. De qualquer forma, eu volto aqui pra te manter informado sobre as coisas todas. Talvez demore um pouco, mas eu volto, não se preocupe. Fique com Deus. A gente se fala em breve. Um abraço.
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Vincent (romance gay)
Ficción General::: LIVRO COMPLETO ::: Daniel é um jovem de vinte e um anos que mora com a mãe e com o novo padrasto em um bairro de classe média da cidade fictícia de Taigo. Daniel leva uma vida tranquila, mas essa tranquilidade logo é abalada quando o jovem per...