Entrada LIX

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Alvíssaras! Alvíssaras! Alvíssaras!

Caderno! Ah, como a vida é linda! Como as flores são maravilhosas! Como o mundo é belo! Como é bom acordar, olhar pro sol, sair pela porta, cantar a natureza, as boas venturas, a Vida! Ah! Como o mundo é esplêndido!  Como a Liberdade resplandece! Como o ar invade os pulmões e eleva a alma e inunda o mundo de frescor! Ah! Ah! Ai de mim de tanta felicidade! Ah, o destino! Como ele é maravilhoso, mesmo não existindo! Como as coisas são perfeitas!

Hoje foi o dia do que eu vou chamar de Sinfonia da Providência. Mas, antes de começar a sinfonia, quero te apresentar o seguinte cenário, que é onde tudo aconteceu na minha cabeça, tudo bem? Vamos lá: imagine um campo. Feche os olhos e imagine um campo vasto, verdejante, onde o ar sopra sereno, viaja pela crosta da Terra livremente e se dissipa onde os olhos não veem. Agora imagine a relva, à altura dos calcanhares, se estendendo pr’além do infinito, parecendo tocar o sopé das montanhas que se estendem na serra lá ao mundo de toda essa verdura. Veja o céu: o céu é azul como a infância; as nuvens brancas de algodão o enfeitam com sua leveza e passeiam pelo ar feito cavalinhos num carrossel. No meio da campina, há uma fonte que jorra água límpida e translúcida. Flores amarelas e cor-de-rosa enfeitam as beiradas dessa fonte, que está circundada por cinco adoráveis criaturas; cinco náiades de cabelos dourados, pele branca como a luz e vestidos de seda esvoaçante, um de cada cor: quatro delas segurando um violino, uma segurando um violoncelo. Vislumbre bem esse cenário e venha comigo apreciar a Sinfonia.

Estou em casa com Lúcio e Leonor. Em nossa cozinha, acabamos de almoçar enquanto as náiades se aproximam de sua fonte. Bem posicionadas, lindas, sorridentes, elas se preparam para tocar as primeiras notas da Primavera de Vivaldi quando a campainha toca. Contente, Leonor se levanta da mesa e caminha em direção à porta com a tranquilidade das ninfas. Ao abrir a porta, as crinas de cavalo dos arcos de todos os instrumentos começam a fazer soar as primeiras notas da obra-prima vivaldiana quando ouço da cozinha: “Lúcio Mendonça, por gentileza”. A melodia segue. Leonor se cala. Passos se aproximam da cozinha assim como o vento acaricia a campina. À minha frente, surgem três homens, três paladinos: dois munidos de espada, um munido de escudo: “Lúcio Mendonça, o senhor está preso”. Os violinos gritam! Os pássaros cantam! As náiades fazem uma ciranda em volta da fonte enquanto a histeria de Leonor preenche o tumulto que as borboletas esvoaçantes causam naquele cenário maravilhoso! “O que está acontecendo aqui?!”, a Criatura questiona, mas permanece sem resposta. “Alguém me explica! O que está acontecendo?!”, Leonor grita, mas as náiades parecem não ouvi-la — nem os pássaros! — e os cavaleiros levam a Criatura para dentro de uma carruagem enquanto Leonor se desespera e eu permaneço imóvel, inebriado, regozijado, mesmerizado por toda aquela sinfonia de sons etéreos que entram pelo meu ouvido e reverberam na minha alma, provocando um êxtase existencial que me fazia enxergar paisagens magníficas! “Daniel!”. Eu não respondia; estava em outro mundo. “Meu filho, eles levaram o Lúcio!”. Minha tentativa de voltar à realidade se confundia com o meu gozo espiritual. “Levaram? Levaram pra onde?”, pergunto, ainda ébrio. “Vieram aqui com um mandado de prisão! Acabaram de levar ele daqui!”, Leonor berrava, mas os violinos tocavam mais alto e os pássaros estavam felizes demais para dar atenção ao lamento da ninfa caída. “A gente tem que ir atrás deles! Vem, rápido! Pega o carro!”.

Sem contestar, fui voltando à minha realidade material. Peguei o carro, que estava parado à porta, e fomos seguir o camburão da polícia — isso porque eu nem tenho carteira de motorista; só sei dirigir (minha mãe estava descontrolada demais pra pegar no volante). Dois ou três quarteirões à frente, encontrei o camburão e daí o segui até um quartel. Eu não sabia se podia entrar naquele lugar, mas eu estava maquiavelicamente curioso pra saber o que significava aquilo tudo. Minha mãe desceu do carro desesperada; eu fui logo atrás. “Lúcio! O que é isso! O que está acontecendo?!”, ela perguntava, histérica, enquanto o desgraçado era conduzido pra dentro do local, tentando se livrar dos policiais que o seguravam algemado. “Eu vou mandar prender todos vocês! Isso é um erro! Vocês sabem quem eu sou?!”, ele dizia, mas não pareciam dar ouvidos a ele. O terceiro cidadão, um cara de quarenta e poucos, cabeça calva e cabelos brancos, sempre paciente, saiu do carro e veio em nossa direção. “Vocês não podem ficar aqui”, disse enquanto os outros policiais levavam o desgraçado pra dentro. “Me explica o que está acontecendo!”, minha mãe berrava. “Senhora, seu marido está sendo investigado por formação de quadrilha, tráfico de pessoas, favorecimento de prostituição, sequestro e cárcere privado. O inquérito ainda está em andamento, mas o juiz expediu ordem de prisão preventiva--”, “Eu quero falar com ele!”, minha mãe interrompeu, parecendo não ter ouvido uma palavra do que o oficial disse. “Ele vai entrar em contato com a senhora, não se preocupe. Agora, com licença, vocês não podem ficar aqui”. “Vam’bora, mãe”, eu disse, puxando minha mãe pelo braço. O desgraçado já tinha sumido das nossas vistas. Voltamos pro carro. Dona Leonor continuava chorando; eu quieto, dirigindo com cara de quem não se espantava com nada do que estava acontecendo. Assim que desceu do carro, ela entrou pra casa correndo e foi direto pro telefone, dizendo “Eu vou ligar pro doutor Pedrosa; isso não pode estar certo!”. Doutor Pedrosa é o advogado de confiança dela. Aproveitando a deixa, fui eu ligar pro meu advogado de confiança, o Paulo. Fui pro meu quarto, ouvindo a falação da minha mãe lá debaixo; doutor Pedrosa devia estar com bastante paciência, também, porque Leonor tira qualquer um do sério.

Vincent (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora