Eu não sei como escrever... Abri esse arquivo há mais de quinze minutos e não consigo falar o que aconteceu... Mas eu preciso, você precisa saber; você precisa ser minha testemunha. Ao menos você tem que acreditar em mim, caderno. Você tem que acreditar em mim. Cara... Eu não consigo parar de chorar. Meu corpo todo dói, eu estou me sentindo humilhado, sujo, destruído. Parece que arrancaram um pedaço de mim... Tudo culpa dos dois desgraçados. Que morram, os dois, juntos na mesma cova! Eles se merecem! Malditos sejam os dois!
Espera, eu vou tentar me acalmar primeiro. Não dá pra escrever agora. Não consigo.
*****
Ok. O dia foi tranquilo. Eu tinha feito um programa mais cedo, voltado pra casa e ficado lá durante a tarde. Quando deu seis e meia, saí pra ir pra faculdade. Eu não iria direto: queria passar na padaria, antes, pra comprar alguma coisa pra comer durante o trajeto. Por causa disso, em vez de fazer o caminho que eu sempre faço, fiz um trajeto um pouco mais longo, passando pela Mesquita, que a padaria que eu gosto de ir fica pra lá. Fui andando devagar, que eu ainda tinha tempo. O céu já estava escurecendo. Apesar de ser horário de pico, tinha poucos carros passando pela rua, porque, como eu já devo ter dito aqui, a Mesquita não é uma rua muito movimentada. E fui, sossegado. Um pouco antes de chegar no ponto onde eu encontro os clientes, escuto alguém me chamar pelo nome. “Daniel!”. Olhei pra trás e vi que quem chamava era alguém dentro de um carro. A pessoa buzinou e eu me aproximei devagar. Vi que no banco do carona tinha outra pessoa junto. Em vez de o carro vir até mim, eu fui até o carro. Quando me aproximei o bastante, o motorista desceu do veículo e se aproximou de mim a passos curtos. Não era ninguém que eu conhecia. “Você é o Daniel Vicentin?”, ele perguntou. A pessoa que estava no banco do carona desceu do carro assim que eu confirmei com a cabeça. Estranhei, afinal eu não conhecia nenhum dos dois. Senti um frio na barriga, mas fiquei imóvel. Depois, o motorista do carro acenou com a cabeça e mais duas pessoas saíram dos bancos de trás. Ouvi alguém perguntar um “É ele?” e outro aceno de confirmação veio.
Com clareza, só me lembro até aí. O cara que estava no banco da frente se aproximou de mim e me deu um soco que atingiu meu maxilar e me fez cambalear pra trás e atingir uma lata de lixo. Os outros três se aproximaram e eu tenho quase certeza de ter ouvido alguém dizer algo como “Doutor Lúcio mandou te dar um recado”. Depois disso, só tenho certeza de ter sido jogado de um pra outro feito um saco de batatas. Tentei ficar em pé o quanto consegui, mas não durei muito. Socos e pontapés vinham de todas as direções e me acertavam por todos os lados. Tentei cobrir a cabeça, mas não adiantou muito: me acertavam as costelas, as pernas, os braços, os rins, o peito, estômago, entre as pernas... fora os que acertaram o rosto. Depois senti dois me levantarem pelos braços. Eu não conseguia me sustentar com as próprias pernas. Alguém me segurou pelo queixo e me acertou outro em cheio no rosto e logo eu senti o gosto do sangue na minha boca. Eu não conseguia gritar, não conseguia me mexer, não conseguia fazer nada e nenhuma viva alma passava naquela maldita rua pra ver o que estava acontecendo e me socorrer. Eu já nem sentia dor, só queria desmaiar logo pra não sentir aquela humilhação... Mas infelizmente eu resisti. Me lembro de alguém ter pego uma faca. Pensei que fossem me matar, mas não: rasgaram minhas roupas (deixando uns cortes no meu corpo, consequentemente) e cortaram o meu cabelo. Eu tentei me mexer, mas não conseguia. Eu ouvia risadas o tempo todo; eles pareciam estar se satisfazendo muito com aquilo. O filho da puta que cortava meu cabelo com a faca deixou a lâmina escapar e me fez um corte na têmpora, quase acertando meu olho.
Eu não sei quanto tempo isso tudo durou, mas sei que, pra mim, foi a eternidade. Quando cansaram de me torturar, me soltaram de uma vez e eu devo ter batido a cabeça, porque não me lembro de ter visto ninguém fugir. Quando acordei, eu já estava no hospital. Me levou algum tempo pra saber o que tinha acontecido. Eu estava numa maca, com um monte de fios ligados a mim e sentindo um cheiro horrível de álcool. Quando viu que eu estava consciente, o enfermeiro me perguntou como eu me sentia. Eu ainda não conseguia falar muito bem. Tudo doía e eu respirava com dificuldade. Depois veio um médico, conversou comigo, me perguntou se eu me lembrava do que tinha acontecido (é claro que eu me lembrava) e falou que tinha pessoas querendo me ver. Perguntou se eu queria recebê-las e eu disse que sim. Só podia ser o Bruno. Logo ele entrou, com uma expressão muito ruim no rosto. Minha cara devia estar horrível... E junto com ele veio Leonor.
Desabei em choro assim que a vi. A expressão dela estava pior do que a do Bruno! “Meu filho! O que aconteceu?!”, ela perguntou, chorando junto comigo; e o choro dela só me fazia sentir mais ódio. Ela segurou meu braço e afastou meu cabelo da testa. O toque dela me causava repulsa, e eu chorava mais, porque não queria vê-la, não queria sentir a mão dela em cima de mim, queria jamais ter nascido, só pra não ser filho dela. “Quem fez isso com você?”, ela perguntou, aos prantos. “Seu marido”, eu respondi num sussurro, com as forças que eu não tinha. “O Lúcio?... Não! Ele jamais faria isso, meu anjo!”. E eu chorei mais, porque eu sabia que ela nunca acreditaria em mim e defenderia aquele demônio até o fim. “Leonor, acho melhor deixar o Dan descansar um pouco...”, o Bruno disse. Ela olhou pra ele, ainda sem tirar aquelas mãos imundas de mim, depois olhou pra mim. Desviei o olhar e acho que ela entendeu que ela era a última pessoa que queria ver ali ou em qualquer lugar. “Eu vou esperar lá fora...”, ouvi ela dizer antes de sair. O Bruno ainda ficou. Ele se sentou numa cadeira ao lado da minha maca e segurou minha mão, me olhando com uma cara de dor que só me fez chorar mais. Eu tentei falar, me explicar, dizer que eu sabia o que tinha acontecido, que era tudo culpa do desgraçado... mas ele sabia que eu não conseguiria fazer isso naquele momento. “Descansa, Dan... Não tenta falar agora; depois a gente conversa, tá?”. “Foi, ele, Bruno... foi ele... acredita em mim”, falei aos tropeços. “Shh... eu sei; eu acredito em você. Para de tentar falar”, ele disse, passando a mão pelos meus cabelos.
Ainda demorou um pouco pra eu controlar o choro. Estou tentando não chorar agora enquanto escrevo, mas não tá fácil. Saí do hospital ontem e vim pra casa. Me olhei no espelho pela primeira vez e adivinhe? Voltei a chorar. Um roxo abaixo do olho, uma boca cortada, mais cortes pelos braços e pernas, uma cicatriz na têmpora, onde o filho da puta deixou escapar a faca, cabelo destruído, outros hematomas menores espalhados pelo corpo, uma costela fraturada e dor ao mexer qualquer parte do corpo ou ao respirar fundo. Me senti um morto vivo. Eu poderia ter morrido... Não quero nem pensar nisso, caderno. A polícia veio aqui em casa e eu fiz o boletim de ocorrência. Do que ia adiantar? Os caras fugiram enquanto eu estava inconsciente e eu não tinha qualquer meio de provar que o “recado” que me deram era legítimo. Poderiam alegar que eu estava com a consciência turva, que poderia ter pensado ouvir isso por ter denunciado o desgraçado dias antes, ou poderiam simplesmente não acreditar em mim, afinal eu sou enteado dele; “ele jamais faria isso”. Se minha mãe retirou as acusações que eu fiz, não custaria nada a ela depor a favor dele em qualquer situação. Era inútil. Contei a eles o que eu me lembrava da forma como lembrava, assim como fiz aqui, e eles foram embora. Me disseram que vão investigar e entrar em contato assim que tiverem qualquer informação. Fingi que acreditei.
Hoje pedi pro Bruno me arrumar a máquina de cortar cabelo do pai dele. O que fizeram no meu não tinha reparo; o jeito foi cortar tudo. Passei a 4 na cabeça toda. Estou parecendo detento em condicional. Diz o Bruno que ficou bom, mas sei que ele falou isso só pra tentar me animar. Pedi pra ele me contar o que houve depois que eu apaguei e ele disse que alguém que passava na rua me viu e chamou a ambulância. Parece que eu disse o nome dele enquanto delirava no chão e a pessoa pegou meu celular e ligou pro único Bruno que tem na minha agenda. Daí ele foi pro hospital e encontrou essa pessoa, que eu não sei quem é, que explicou o que tinha acontecido. O Bruno ligou pra minha mãe, que chegou pouco depois. O resto você sabe. Minha “mãe” me ligou hoje e eu fiz o possível pra deixar bem claro que eu não quero ver, ouvir falar ou me lembrar de que ela existe tão cedo, quiçá pelo resto da vida. Pra mim, ela e o desgraçado têm mais é que ficar juntos, mesmo, e morrer pra lá, bem longe de mim.
Já falei demais. Pensar nisso tudo ainda me embrulha o estômago; vou parar por aqui. Não sei se volto amanhã nem depois. Não sinto vontade de nada além de me enfurnar no quarto e dormir. Pra sempre. Vou indo. Qualquer hora a gente se vê. Se cuida.
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Vincent (romance gay)
General Fiction::: LIVRO COMPLETO ::: Daniel é um jovem de vinte e um anos que mora com a mãe e com o novo padrasto em um bairro de classe média da cidade fictícia de Taigo. Daniel leva uma vida tranquila, mas essa tranquilidade logo é abalada quando o jovem per...