Capítulo 42

689 110 2
                                    

Quando percebeu que estava sonhando acordada ao lembrar de sua primeira conversa de verdade com Patrick, Kenny balançou a cabeça, esfregando os olhos. Franziu as sobrancelhas confusa ao perceber o sono que começou a dominá-la, e tentou focar na viagem, e no dragão vermelho de Jack à sua frente logo abaixo de Pikan, voando acima dos aprendizes.
As vozes dos cavaleiros pareciam ir e vir dentro de uma bolha de água e a paisagem começou a se distorcer abaixo de Aska, se alongar e encolher de forma bizarra, fazendo Kenny começar a achar que estava definitivamente dormindo.
-Kenny você está bem...? -ouviu vagamente a voz do mestre chamá-la, e teve que fazer esforço para entendê-lo. -Se precisar podemos fazer uma paus...
Não escutou o resto da frase de Sam, o Cavaleiro junto com seu dragão roxo foram engolidos por uma onda escura de uma substância esquisita, aglomerados de pedras e algo que parecia ser areia, tudo sumiu de uma vez e jogou Kenny para baixo, por longos segundos.
Seus ouvidos estalaram e sentiu seu corpo sem peso, tudo em sua cabeça parecia ser areia e pedras e tudo sussurrava e rangia de forma desagradável. Até que a sensação também sumiu.
Kenny apertou os olhos tonta, sentindo o chão abaixo de si girando e caiu sentada, em cima de um piso de madeira, aproveitando para esperar a tontura passar.
À sua volta estava um lugar de roça, uma plantação de trigo ou algo parecido se estendia à sua frente e uma pequena casa de madeira às suas costas, em cuja varanda havia aparecido. Só então percebeu onde estava: em sua antiga casa no Japão, no meio do campo na beira da floresta, as portas de correr de madeira e papel abertas para a plantação.
Imediatamente Kenny sentiu um aperto no peito, e seus olhos se enxeram de lágrimas ao ver, ao longe, a pequena figura curvada de sua mãe japonesa, Shizuku Hayashi, trabalhando com Akira no campo. Ambos pareciam muito mais cansados do que Kenny se lembrava, sua mãe estava com as costas curvadas e os ombros caídos, seu irmão estava mais pálido e o cabelo escuro, antes longo e sedoso, havia sido cortado até a altura da testa.
Kenny sentia seu coração batendo como louco contra o peito, a confusão invadindo-a ao voltar para o Japão. Olhou para si mesma, percebendo que a armadura havia sumido e vestia o kimono simples que usava para ir ao templo nos festivais de verão. Porém, a espada fina e leve que ganhara provisoriamente dos Cavaleiros ainda pendia de sua cintura, fazendo-a se perguntar que tipo de ilusão alternativa era aquela em que estava.
Parece tudo tão real... Pensou, arrastando os pés descalços no chão de madeira e sentindo a sensação tão familiar do piso desgastado.
Desceu os pequenos degraus da sala para fora, se assustou com o vento frio que soprou sobre a plantação à sua frente, e começou a acelerar o passo até sua família. Quando chegou a menos de dois metros dos dois, parou por um segundo hesitante. Era tudo muito real para ser apenas uma ilusão, assim como o tecido grosso do kimono, a terra fria sob seus pés e a presença de sua mãe e seu irmão, mas ainda assim...
-Kenny...? -ouviu brevemente a voz surpresa de Akira, tremendo, e encontrou seus olhos escuros fixando-a. Imediatamente sua mãe também se virou após lançar um olhar confuso para o rapaz. Seus olhos se enxeram de lágrimas no mesmo momento em que as de Kenny escorreram por suas bochechas, e a garota sentiu o calor do corpo magro do irmão envolvendo-a trêmulo, e a mão calejada de Shizuko segurar a sua, beijando-a e chorando.
-Onde esteve..? -sussurrou Akira entre lágrimas e soltou-a, para que a mãe a abraçasse logo em seguida, enquanto Kenny apenas balançou a cabeça soluçando e se enterrou em seu abraço.
Em todo o tempo que estava ali desde que aparecera de repente em casa, Kenny tinha a sensação de que uma parte de sua memória havia sido roubada e agora havia voltado, no momento em que abraçara seu irmão Akira e sua mãe, como se sua vida na Terra tivesse sido apagada de sua mente com o tempo que passou na Terra da Geada.
Uma estranha sensação de realidade a atingiu, fazendo-a se perguntar se tudo não passara de um sonho muito longo. Então por que estava com uma espada na cintura? Por que parecia ter passado tanto tempo para Akira e sua mãe; será que estava em coma? Por que suas pernas doíam, com a nítida sensação da sela de Aska se mexendo sobre seus músculos?
Kenny já não sabia mais qual realidade era a real e quando voltaria ou sairia de uma delas, mas naquele momento foi obrigada a viver a atual, quando Akira agarrou suas mãos chorando e perguntou mais uma vez:
-Onde esteve Kenny? Achamos que tinha morrido.. Onde esteve??
Mas o garoto nem mesmo lhe deu tempo de responder, apertando-a num abraço desesperado outra vez, sussurando que sabia que ela voltaria. E naquele momento Kenny percebeu que nunca havia abraçado o irmão antes, devido ao comportamento japonês entre meninas e meninos.

Kenny se sentiu patética ao terminar de contar a história fantasiosa desde que desaparecera de casa e foi levada pelos Cavaleiros de Dragões. Naquele momento mais do que em qualquer outro, aquilo tudo parecia uma realidade muito distante, um sonho, enquanto sua mãe colocava chá em sua tigela, na pequena mesa da sala.
Mas ao contrário do que achou que aconteceria, não precisou mudar sequer um detalhe da história para que Akira e sua mãe acreditassem; ambos apenas a escutavam de olhos arregalados e expressões preocupadas.
Quando terminou, sua mãe voltou a chorar e Akira colocou o braço sobre seus ombros, lançando um sorriso para Kenny que lhe deu a impressão de ter deixado de existir por um longo tempo. Quando se acalmou o suficiente para falar, sua mãe disse com a voz trêmula:
-Todos diziam que você tinha sido sequestrada ou morta... Eu não queria acreditar, mas acreditei, parecia ser a única opção aceitável..
-Como voltou? -Akira perguntou interrompendo sua mãe, fazendo Kenny suspirar ao responder:
-Eu não sei, estou me fazendo a mesma pergunta... E muito menos seu como voltar ou se vou voltar.
Imediatamente sua mãe agarrou sua mão assustada, e disse trêmula:
-Por favor, Kenny, por favor não vá de novo! Você está conosco de novo, lá você estará em perigo o tempo inteiro... Por favor Kenny, não faça esse absurdo, eles tiraram você de nós, você já poderia ter morrido--
-Mas eu não morri. -interrompeu o fluxo desesperado de palavras e olhou nos olhos da mãe. -Eu sei que posso morrer a qualquer momento mãe, eu sei disso tanto quanto você. Mas eu também não posso ficar aqui. Não é o meu lugar e você sabe disso...
Sua mãe voltou a soluçar, soltando sua mão, e Kenny ficou em silêncio, se sentindo mal por tudo que estava fazendo, mesmo sabendo que realmente não poderia ficar ali e encontrar um jeito de voltar era apenas o melhor que poderia fazer para proteger a família de toda aquela confusão.
Akira pegou o braço de sua mãe e sussurrou algo em seu ouvido, em seguida se levantando e ajudando-a a também ficar de pé, e levou para o quarto. Alguns minutos Kenny ficou sozinha na sala, enquanto o sol se punha e sua hora preferida do dia chegava, a "Hora Mágica" ou "Hora Dourada" como chamavam no Japão o pequeno e exato intervalo entre o dia e a noite, a hora em que o mundo dos mortos e dos vivos estava interligado e os vivos podiam ter contato com as almas mortas por alguns instantes, antes que a noite chegasse por completo.

Cavaleiros de Dragões II - A Joia PerdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora