Capítulo 73

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Scara prendeu a bainha de sua espada em seu cinto, se certificando de deixar a pequena cabana da mesma forma que a encontrara, e deixou-a saindo para a clareira iluminada pela lua.
Seu cavalo de batalha a esperava paciente do lado de fora e os barulhos noturnos da floresta e da cachoeira enchiam seus ouvidos aguçados. Porém, apesar da calma que vivenciara por aqueles dias ali na floresta, uma forte sensação de perigo a dominava desde a manhã daquele mesmo dia e por precaução reforçou seus encantos de proteção.
O cavalo relinchou, dando um passo assustado para o lado quando a guerreira, num movimento brusco, desembainhou sua espada girando velozmente para pará-la apontada na direção oposta ao seu cavalo, para a figura que agora a fitava de olhos brancos e vazios.
-Quem é você? -Scara perguntou, tão afiada quanto a ponta da lâmina que agora tocava o queixo de sua inimiga.
-Preciso lhe avisar que essa espada não me causará dano algum. Portanto abaixe-a. -a figura respondeu, indiferente.
-Não a abaixarei enquanto não disseres o que deseja de mim. -Scara devolveu, e a mulher sorriu, um sorriso sombrio, combinando com o emblema negro em sua testa pálida, e disse ameaçadora:
-Scara Aranlin, você usou do meu poder, colocou em risco este mundo para um golpe tão irracional, e achou que não haveria consequências? Não preciso lembrá-la de que já está em dívida com os deuses, preciso?
Scara cerrou os olhos, encarando a deusa sem se intimidar com seu olhar, e retrucou com cuidado:
-Não tente convencer-me que viestes aqui para me dar uma bronca. Sei que não é este o motivo.
-Talvez não. -Naomy respondeu, inabalada. -Isso te dá confiança para não tomar cuidado com suas ações? Você não é o seu rei, Scara.
-Que seja. -Scara falou embainhando sua arma, e apesar de imaginar o que era, perguntou: -O que queres?
-Vá para o sul. -Naomy respondeu sem rodeios, para sua surpresa. -Irá encontrar o que procura e terminar sua tarefa por aqui, talvez até pague sua dívida com a Trindade.
Scara franziu as sobrancelhas, encarando a deusa de expressão sombria, e quase teve de rir ao ler em seus olhos o que pensava.
-Hipócrita. -cuspiu, não temendo por um segundo a pressão que explodiu na clareira, a fúria da deusa apitando em seus ouvidos e sua energia perfurando seu corpo e mente. Todos os animais e criaturas ao seu redor se calaram, mas Scara continuou, com dificuldade: -Uma deusa do Caos se preocupando com uma amaldiçoada. Estás com remorso, Chun?
-Não sabe nada sobre mim, Aranlin. Poupe o tempo que usa fazendo especulações e agradeça pela ajuda que estou te dando. Eu poderia simplesmente tirá-la desse mundo e facilitar meu trabalho. -a voz da deusa trovejou em seus ouvidos e mente.
-Sim. -Scara respondeu, respirando fundo quando a pressão desapareceu, e assim fez Naomy, deixando-a sozinha com os sons da floresta voltando inseguros. -Sei que tens princípios mais nobres.
Virou as costas para a clareira, montando seu cavalo e com um "Hiá!" deixou a floresta a galope, em direção à cidade. Pensava na conversa com a deusa, algo certamente estava muito errado, mas por mais que percebera que falava de Anastácio, não conseguiu descobrir o que era a real razão por trás de tudo aquilo, nem mesmo um mínimo gesto que pudesse lhe dar uma pista a deusa deixara escapar. Certamente algo muito maior do que apenas a Herdeira amaldiçoada.

Soldados corriam de um lado para o outro ao seu redor, pessoas davam comandos, lojas fechavam assim como portas e janelas enquanto Mielnë agarrara a mão de Jenny e corria com a garota e mais quatro elfos rua abaixo, ora ou outra respondendo ou dando alguma ordem ao passar por alguém.
A elfa vestia uma armadura escura e portava uma espada curvada na cintura, a única coisa que Jenny fora capaz de notar entre o desespero de perder Naro tão de repente e a confusão em que se encontravam naquele momento. Custou a reconhecer Lavin entre os elfos que as acompanhavam, mas além daquilo apenas se deixava levar por Mielnë sem questionar, para onde quer que estivessem correndo. Já era suficiente que a elfa como comandante se preocupasse com a garota humana no meio daquela confusão.
Ouviu um grito atrás de si quando começavam a chegar perto dos muros da cidade e o barulho de metal sobre o calçamento, mas sem coragem de olhar de para trás apenas continuou correndo atrás de Mielnë, que também não olhara para trás nem por um segundo. Enquanto isso se aproximavam cada vez mais dos muros, e ao verem-na, os soldados - humanos e não humanos - que guardavam a escada para a muralha, imediatamente abriram caminho e os cinco subiram, parando na estreita passagem em cima dos muros, de onde arqueiros e outros soldados atiravam contra algo lá em baixo. Enfim Mielnë parou e se virou, soltando a mão de Jenny, e naquele momento viu os olhos da elfa, cheios de lágrimas, mas nem por um momento alterou sua postura, e disse à aprendiz:
-Jenny, preciso que fique aqui, meus homens irão protegê-la. Estarei de volta em um minuto, mas me prometa que não sairá daqui.
Havia algo de diferente na voz da elfa negra, que Jenny não conseguiu identificar, mas fez que sim freneticamente com a cabeça, e a guerreira apertou seu ombro num gesto confiante antes de se virar e correr pela muralha até desaparecer de vista. Os elfos a deixaram em seu meio, todos armados com espadas parecidas à da comandante, leve- e elegantemente curvadas, e a garota teve alguns instantes para olhar para baixo da muralha - e congelou. Hordas de criaturas negras e bizarras se forçavam muralha acima, caindo sob a chuva de flechas, lanças e ataques mágicos vindos de cima dos muros, mas ora ou outra um monstro abria caminho entre os outros e saltava por sobre o muro, agarrava um soldado ou passava direto, para a cidade, onde mais soldados o esperavam. As criaturas gritavam e se amontoavam sem ordem, se transfigurando para monstros maiores, com mais dentes ou braços mais longos, avançavam sem se importar com as pontas afiadas de lanças que os esperavam no topo da muralha e caíam em cima das outras, levando-as para baixo consigo.
Jenny não conseguia parar de chorar, horrorizada com a cena que presenciava, temendo virar uma delas ao ver os soldados atingidos se contorcerem para a morte ao dar origem a novas criaturas asquerosas após entrarem em contato com uma delas. A garota gritou quando sentiu algo tocar seu ombro, voltando a chorar incontroladamente ao ver um dos elfos que a protegiam se abaixar ao seu lado, segurar suas mãos e fazê-la olhar em seus olhos cinzentos, dizendo:
-Tenha coragem, garota. Nada irá lhe acontecer, eu prometo, mas o medo atrai os seres das trevas. Seja forte, por você.
Jenny reprimiu um soluço, assustada, quando o elfo abriu sua mão e colocou nela o cabo de sua própria espada, fechando-a com a própria mão e segurou-a por um instante ao voltar a falar:
-Use-a se precisar, eu sei que consegue. Estarei logo atrás de você.
Sentiu sua mão fria quando o elfo soltou-a e se voltou para a muralha, pegando uma lança com um dos outros soldados, reparando o mesmo brasão dos estandartes nos muros estampado nas costas de sua armadura branca, voltadas para ela, e de algum lugar conseguiu tirar uma fiapo de coragem, erguendo a espada élfica e por um momento se lembrando de Naro e Leo ensinando-lhe a lutar.
Porém, naquele momento escutou alguém gritar de algum lugar abaixo da muralha, seguido do som de uma trompa grave:
-As fadas chegaram!
Sua voz foi abafada pela nota longa da trompa, e um tremor no chão da muralha fez Jenny olhar assustada para o elfo que lhe dera sua espada,mas outra vez escutando de algum outro ponto do muro alguém gritar Recuar! e os elfos a fizeram voltar para a escada, junto aos outro soldados. A terra continuava a tremer, apesar de não na mesma intensidade de quando estavam lá em cima, e começaram a sentir uma poderosa onda de energia vir de todos os lados ao mesmo tempo, até o ponto em que seus ouvidos apitaram e ao olhar para o alto da muralha, viu vários grandes pontos de luz e vagamente reconheceu a silhueta de pessoas lá em cima.
Jenny ergueu sua espada assustada ao ouvir os gritos das criaturas das trevas, todas juntas e mais altas e bizarras do que foram até aquele momento, mas em um segundo ficaram totalmente mudas, e a luz vinda das pessoas na muralha cegou-a, obrigando-a a tampar os olhos. E quando abaixou as mãos, todos estavam silêncio, parados, ainda em alerta, e de repente, com uma exclamação que não entendeu vinda da muralha, todos ao seu redor explodiram em gritos e comemorações.
As pessoas soltaram suas armas, aliviadas, alguns choraram, outros se abraçaram, comemorando o fim daquela curta e repentina batalha, e ao olhar para trás, viu o elfo de antes sorrir para ela e tirar seu elmo, exibindo cabelos brancos  e lisos sobre as orelhas pontudas, e colocar o punho sobre o peito, naquele gesto que já vira Mielnë usar com outras pessoas. Correspondeu timidamente, e naquele momento viu soldados e guerreiros abrirem caminho quando a figura de Mielnë apareceu correndo, nem mesmo teve tempo de processá-la quando foi quase  derrubada pelo abraço apertado da elfa.
-Obrigada.. -Ouviu-a murmurar em seu ouvido, antes de se voltar outra vez para os soldados ao seu redor.

Cavaleiros de Dragões II - A Joia PerdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora