Capítulo 75

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Anastácio abriu os olhos arquejando, sentindo seus pulmões arderem com o ar pesado que entrou de repente, tentando com dificuldade recuperar o fôlego.
Tudo ao seu redor era escuridão e um frio doloroso perfurava seus ossos, suas roupas estavam enxarcadas quando se ergueu de onde estava deitada, água escura cobria seus pés e tornozelos e não se lembrava de nada. Uma espada estava caída ao seu lado na água, a lâmina afiada manchada de sangue e terra e um brasão medieval fora fundido no punho, assim como no peito da armadura que vestia. Um vazio horrível pesava em seu peito e sentiu vontade de chorar de repente, se sentindo perdida e sozinha. De alguma forma sabia que não sairia daquele lugar sem ter que enfrentar algo terrível que espreitava no escuro e a observava, e se sentiu de volta à infância, quando não conseguia dormir à noite e as sombras de seu quarto se transformavam em monstros e criaturas escuras que a observavam com sede mas que não podia enxergar.
Mas dessa vez não havia cobertor sob o qual se esconder e se fechasse os olhos continuava vendo aquela escuridão e sentindo seu frio gélido. Onde estava antes daquilo..? Se lembrou de ter pegado a canoa do rio na beira do pequeno sítio de sua mãe depois de discutirem por algum motivo, da galinha Carlos em seu colo.. Então o que era aquela armadura, aquela espada, os machucados em seu corpo?
Pegou a espada da água rasa, mas o medo que a torturava nem mesmo tremeu em desaparecer, não sabia empunhá-la e nem contra o que usá-la. Sentiu que havia alguém em algum lugar que poderia ajudá-la, mas não mais do que aquilo, e enxugou surpresa uma lágrima que escorreu grossa por sua bochecha, se misturando ao sangue que manchava sua mão. Aquele sangue não era seu.
A espada caiu de sua mão e um grito involuntário escapou de sua garganta, seu corpo foi forçado ao chão e até mesmo a força para gritar se esvaiu com a sensação de milhares de facas e lanças perfurando suas costas, empurrando-a para baixo. Sentiu a água gélida tocar seu rosto, tentando em vão respirar sob a dor que a perfurava, lágrimas silenciosas se misturando ao sangue e à água do chão, seu corpo tremendo sem forças.
Ahh, tola.. Ouviu uma voz intensa, não sabia se vinha de sua cabeça ou de seus ouvidos, parecendo ecoar dentro de seu corpo e em todos os cantos inalcançáveis daquele deserto de trevas.
Por que? Ouviu agora e conseguiu erguer o rosto, só para ver olhos brancos olharem-na de volta, mais uma vez invadindo cada segredo de sua alma, um rosto tão pálido quanto os olhos e lábios tão negros quanto aquela escuridão, imóveis mesmo sabendo que a voz era dela:
Foi direto para os braços de seu maior inimigo. Por que? Sentiu que as trevas eram muito mais fortes lá, mas foi mesmo assim.
Anastácio tentou processar aquelas palavras enquanto um turbilhão de vozes, dores e pensamentos que não eram seus torturavam-na, tentou em vão se erguer sobre os braços trêmulos. Sabia que aquela mulher fantasmagórica era parte daquela escuridão e tinha poder sobre ela como sobre a mente de Anastácio, mas não parecia ser quem a controlava naquele momento. Não era ela que estava em sua mente e havia uma confusão em seus olhos.
Você já derrotou a maldição uma vez. Ela continuou, sua voz atravessando cada pedaço da alma da garota como lâminas. Então por que se deixou atingir, foi pra onde ela poderia voltar a dominá-la? Eu não entendo, e isso me frustra. A infecção daquelas criaturas era tudo que ela precisava para voltar a se fortalecer. Então..?
Eu não sei... Anastácio sussurrou, fechando os olhos fraca com o zumbido doloroso em sua mente naquela atmosfera negra. Lampejos das memórias da batalha começavam a surgir em sua mente, mas nada mais do que aquilo, e a pergunta de quem realmente era se repetia em sua mente. Por que estava lutando, com espada e armadura, um dragão? Uma guerreira poderosa de cabelos azuis e outro dragão, negro, ao seu lado. O que estava acontecendo? Aquilo não existia.
A entidade fantasmagórica a fitava em silêncio, as trevas pareciam se dobrar ao seu redor, tocavam-na e se fundiam à sua pele pálida em símbolos e desenhos estranhos, mas nada disso ela parecia controlar, parecia mais estar visitando algo que abandonara à muito tempo...
Eu não tenho mais poder sobre a maldição, tão pouco para tirá-la quanto para lançá-la. Você terá que lutar sozinha, mas lute garota. Não sabe como o destino desse mundo depende da sua força... Há pessoas esperando por você para guiar seu caminho.
Anastácio tossiu, sentindo sangue escorrer por entre seus lábios com a magia negra corroendo-a no momento em que ousou sentir uma gota de esperança, afogando-a no desespero de não possuir a própria mente. Seu único consolo era esperar que fora de sua mente ainda estivesse na planície e nenhuma pessoa ao seu redor que pudesse machucar, mas nem mesmo daquilo podia ter certeza.
A garota deixou a cabeça cair nos braços, sem forças para querer evitar a água gelada em seu rosto, sem forças para tentar lutar contra a magia negra que tentava a todo custo entrar em seu corpo e deixou que a dominasse, implorando apenas por um segundo de fôlego. Sentiu-a como veneno em suas veias, uma teia de aranha em sua mente, mas quase chorou de alívio ao sentir seus pulmões se encherem sem doer, e relaxou os músculos doloridos e retesados, apenas respirando aliviada.
É isso que eles querem, garota. Ouviu a voz ecoar em sua mente outra vez. Fazer você deixar que a dominem em troca de poder respirar e viver. Pode pensar que ainda é dona de si, mas está sendo cada vez mais enganada, enquanto a maldição pega cada vez mais um pedacinho de você.
Eu não tenho escolha. Anastácio sussurrou desesperada, Eu quero respirar..
De repente sentiu o toque gélido das mãos da mulher em seu rosto, e seus olhos translúcidos fitando os seus, sem expressão, mas sua voz exibia sua insistência:
Menina, sua mente não precisa respirar.
Naquele momento seu rosto pálido se desfez diante da garota, e um rugido ensurdecedor encheu seus ouvidos, toda aquela realidade estremeceu sob a poderosa aura negra que preencheu a planície negra e alagada e Anastácio foi jogada para o chão com o ataque que pressionou sua mente de repente. Sentiu sua consciência jogada de um lado ao outro como uma folha na tempestade, sob total controle do Caos, deixando-se ser levada por um momento. 
E então, só então pareceu processar as palavras da entidade pálida, um segundo antes de se desfazer em cinzas. Anastácio abriu os olhos, e apenas aquele pequeno movimento a fez enxergar o que todo aquele tempo estava diante de seus olhos. Sua mente era sua, e por mais que estivesse sob o poder dos deuses do Caos, quem a comandava era apenas ela.
A tempestade de trevas e presenças malignas rugia ao seu redor, açoitando seus ouvidos, porém quem a controlava agora era Anastácio. Os pulmões que ardiam antes já não existiam mais e o corpo que sentira doer e pesar se tornara uma aura translúcida e leve que podia controlar como quisesse. A espada que estava caída na água agora era uma chama viva em torno de seu braço e as trevas ao seu redor chiavam e recuavam diante dela.
Viu uma parte de Scara naquele fogo, assim como o Rei e a Rainha Aranlin, seus pais, e o outro braço pulsava negro com a maldição que ainda hospedava seu corpo, sob controle agora da garota ruiva.
Aos poucos a escuridão ao seu redor perdeu a intensidade, e pequenos buracos na barreira entre sua mente e a realidade começaram a exibir a planície cinzenta em que perdera sua última batalha, agora vazia e pisoteada pelo exército de criaturas das trevas que passara por ali.
O enorme corpo do dragão prateado jazia no centro da planície, ao lado de uma pequena forma escura e ruiva, o braço ainda esticado numa última tentativa de alcançar seu melhor amigo. Anastácio fitou aquela cena, estática, sem saber o que realmente estava acontecendo. Via seu próprio corpo, morto ao lado do dragão, e confusa olhou para baixo, para si mesma. Exatamente o mesmo corpo que via ali diante de si, a armadura ensanguentada, a espada, mas se via cada vez mais transparente, como se aos poucos desaparecesse.
E naquele momento entendeu que livrara sua alma da maldição, mas não podia salvar seu corpo. E no instante em que luzes douradas começaram a surgir de dentro de seu corpo fantasmagórico, e ao seu virar para olhar de onde vinham vendo uma figura brilhante e alada se materializar à sua frente, soube que sua batalha acabava ali. 
E pela primeira vez se permitiu deixar ir o que outros poderiam fazer por ela, sabendo que não estivera sozinha. 

Cavaleiros de Dragões II - A Joia PerdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora