A ida para casa foi mais calma do que eu pensei. Esperava que eu ficasse mais ansioso, mas eu estava bem. Quer dizer, até certo ponto.
A medida que nos aproximávamos mais, que as ruas ficavam mais familiares, foi se formando um nó no meu estômago e minhas mãos começaram a suar. Eu via a floricultura e fazia os cálculos até chegar em casa, três quarteirões. O mercadinho, quatro ruas de distância. O carro do "Anti-Pragas" que vivia oferecendo serviços na minha rua, uma rua de distância.
Mas foi na entrada da rua que me dei conta da gravidade do que eu estava fazendo ao me arriscar em encontrá-lo. Era um momento muito não propício. Tínhamos descoberto tudo dele, sabíamos da minha mãe, sobre mim, sobre sua vida frustrada, e nossos antigos vizinhos. Sabíamos de tudo. E agora eu estava me colocando em risco. Como um passarinho indo intencionalmente para uma arapuca, apenas esperando que alguém puxasse o pauzinho e o prendesse ali. Eu era um passarinho.
YoonGi Hyung foi diminuindo a velocidade, até estarmos a 20 km/h, em outras palavras, estávamos quase parando. A casa ia se aproximando, e quase não a reconheci quando a vi.
Costumávamos ter a casa mais limpa e simples de todas. Paredes brancas, vidro e ferro. Era a casa mais moderna e chata da rua. Os dias que passamos fora tinha dado a liberdade da natureza tomar conta da casa: os pilares que seguravam a varanda estavam sendo cercados por heras, e cocô de passarinho pintava o telhado, além da grama estar crescida o suficiente para cobrir os sapatos.
Enfim paramos de vez, YoonGi voltou-se para mim com um suspiro e tentou sorrir.
-Pronto?
A resposta certa era um "claro que não", mas assenti e respirei bem fundo.
-É, acho que sim.
Sai do carro sem nada além do celular no bolso. Contornei o carro e me arrisquei no mato que cobria o passeio que levava até a entrada. A casa me encarava, e eu encarava a casa, com o coração aos saltos no peito. Quando subi os degraus, não precisei bater à porta. Ela se abriu e revelou meu padrinho de uma forma que eu nunca tinha visto.
A barba crescida e grisalha, que o deixavam com um rosto cansado. Usava camiseta e bermuda, invés dos ternos caros de sempre. Sob os olhos, olheiras escuras denunciavam seus dias sem dormir. As mãos estavam livres, mas não significava que não estava armado.
Ele me olhou e então limpou a garganta.
-Jimin. Sinceramente, achei que não viria.
-Me ofereceu acabar com isso para sempre. Eu não podia negar.
ChungHo abriu um sorriso raro, mas frio e ficou de lado para abrir espaço para mim. Encarei o antigo corredor da minha casa, e meu peito apertou. Por mais que eu odiasse algumas lembranças daquele lugar, ainda tinham outras que eu amava. Entrei a contragosto.
A casa estava escura, a poeira cobria a superfície de todos os móveis da sala. O sofá, que eu tanto passei tardes estudando, agora estava cinza de tanta poeira.
-Está tudo... podre. -comentei, passando um dedo no tampo da mesinha do hall.
-Os carros não deixaram de passar na rua, Jimin. Nós que fomos embora.
Sua voz me arrepiou os braços, o ódio amargou minha garganta. Olhei para ele por cima do ombro, ele continuava na entrada da casa, com as mãos nos bolsos.
-Então? Estou aqui.
ChungHo riu e andou até a frente do sofá. Pegou a fita amarela da polícia, que antes fazia um X na porta de casa e a balançou para mim.
-Sou um criminoso agora. -ele disse, sorrindo de escárnio. -Você fez isso. Você e o seu namoradinho. -com raiva, ele jogou os pedaços da fita no chão. -Está feliz?
-Saltitante. -cruzei os braços para esconder as mãos tremendo. -Você sequestrou, atirou, torturou ele. E a mim? Me escondeu minha mãe, me maltratou, me ameaçou inúmeras vezes, você atacou meu psicológico e me fez sofrer fisicamente. -sem perceber eu estava gritando. Respirei fundo e tentei estabilizar minha voz. -Estamos quites.
ChungHo riu e balançou a cabeça, como se estivesse incrédulo. Rapidamente, olhei ao redor procurando oque usar caso ele viesse me atacar. A porta de saída estava a dez passos para a esquerda, e o objeto mais próximo era a mesinha, na parede tinha um quadro. Se ele viesse para cima, o atrasaria com o quadro e correria para a porta. E lá fora... YoonGi cuidaria de tudo.
-Já quer fugir? -ele perguntou.
Voltei meus olhos pra ele assustado.
-Claro. -eu disse, sinceridade era a alma daquele negócio. -Acha que eu confio ficar aqui com você? Como você mesmo disse, um criminoso.
Seus olhos se estreitaram ao ouvir a última palavra. Ele fechou as mãos em punhos e ergueu o queixo tentando manter a dignidade.
-E como está a sua mãe? -ele perguntou, finalmente lembrando de um ponto que me perturbaria.
Suspirei exasperado.
-Certo, porque não me diz logo oque quer?
ChungHo sorriu satisfeito por eu ter perdido o controle por um momento.
-Não vim te pedir desculpas. -ele disse. -Vim te agradecer.
A loucura brilhava nos seus olhos. Ele claramente não estava bem, mas eu fiquei quieto esperando ele falar. Tinha deixado bem claro na carta, meu anos de tortura tinham sido os melhores da sua vida, e ele me agradecia por isso. Eu queria saber mais, queria ouvir e revidar, queria vê-lo sofrer como fez comigo, até estar aos trapos no chão. Mas esperei.
Respirei fundo.
-Prossiga.
Ele abriu os braços e sorriu como um lunático.
-Não, Jimin, eu quero ouvir. -ele se sentou com tudo na poltrona, levantando uma nuvem de poeira. -Me conte suas mágoas de mim, seus agradecimentos, sua raiva.
-Agradecimentos? -perguntei incrédulo, mas ele pareceu se divertir com isso. -Eu nunca agradeceria alguém como você.
-Sim, e...
Parei um momento. Ele queria me ouvir falar mal dele, queria me ver esbravejando e com raiva pulsando de todos os poros. Eu não entendia o porquê.
-ChungHo, -chamei, o nome ainda soava estranho na minha boca. -Por que você fez tudo isso? Toda essa tortura?
Seus olhos ficaram vidrados, a respiração pesada. Ele passou as mãos no rosto e balançou a cabeça.
-Você não precisa saber dos motivos.
-Foi por causa do rapaz? O pai de Park Chanyeol. Foi isso?
-Não lhe interessa. -sua voz elevou.
-Eu o encontrei recentemente. -continuei, ignorando sua raiva crescente. -Você amava ele?
-Park Jimin! -ele chamou, alto como um chicote estalando. Senti meus ossos tremerem com o trauma do nome. -Cale-se. Você tem sorte por eu não ter feito você ficar num quarto para sempre.
-Você ficou triste quando me viu com o filho do seu amante? -perguntei, tentando atacar o ponto principal. -Os outros Park eram mais felizes que você?
Ele ficou vermelho como um pimentão, e então explodiu.
-Eles não podiam ser mais felizes porque eles não estavam felizes! -esbravejou. -Como pode um homem que não ama a esposa ser feliz num casamento? Ter um filho! Dois!
No silêncio da sua mágoa, entendi o cerne da raiva. Seu ódio não era por meus pais, ou por mim, claro que ter que ser meu pai acabou por deixá-lo completamente louco, mas o problema não era ser "pai solteiro". O problema não era nada do que tinha explicado para o Jungkook. Meu sofrimento tinha sido um reflexo da vida dele, ele via em mim alguém feliz e isso era insuportável para ele. Felicidade não tinha sido parte do seu pacote de vida. Não depois dos vinte e cinco anos.
-Os Park tinham filhos. -ele resmungou, cobrindo a boca com a mão. Os olhos vidrados na mesinha de centro. -Yoora e Chanyeol. Seus amigos. -ele suspirou e entrelaçou os dedos. -Akira, o pai deles, é uma das melhores pessoas que já conheci... -seus olhos devaneavam no passado. -Nos conhecemos na universidade, estudamos juntos por um tempo até ele ter que voltar para o Japão. Sua mãe acobertou meu caso com ele. Então seus pais casaram, e de repente MinJi estava grávida de você, e... tudo se enrolou. Quando fui para o seu batizado e cheguei pela primeira vez naquela casa... ele era o vizinho. -ele riu, como se a lembrança lhe causasse dor e felicidade ao mesmo tempo. -Tentamos esquecer nosso passado, mas era impossível. Toda vez que eu o via, parecia que estávamos na universidade de novo. Jovens. Cheios de possibilidades.
-E você não podia deixar que eu tivesse as mesmas chances. -passei a mão nos olhos para afastar as lágrimas. -Era mais preferível fingir a morte da minha mãe e me manter longe do mundo. Você é doente.
ChungHo se levantou, quase derrubando a cadeira.
-Chances, Jimin? Éramos jovens, sim, tínhamos chances na vida, mas o mundo não deixaria que tivéssemos, porque éramos abominações! Eu fiz isso para que você não conhecesse essa parte cruel do mundo que tem lá fora. Eu nunca pensei que trazer uma mulher e um menino para dentro de casa, destruiria os meus planos.
Dei um passo para trás. Quanto mais longe melhor.
-Depois de hoje, eu não quero ver mais nunca a sua cara. -eu disse com a voz trêmula. -Nem em foto, nem de verdade, em nenhuma circunstância.
-Nunca vai se livrar de mim. -ele disse, com um sorriso de escárnio. -Eu sempre vou viver aqui, nessa casa, seja lembrança, ou não.
Houve um silêncio.
Baixei a cabeça, encarando o chão da casa que eu esperava nunca mais voltar. Antes mesmo que voltasse a olhar para ele, escutei o click de metal. Meu coração acelerou e senti meus olhos ficarem úmidos.
-Você não tem que fazer isso. -eu disse, assim que ergui a cabeça. Ele segurava uma pistola, não tão grande, mas que certamente faria um estrago enorme.
-Tenho sim, Jimin. Sabe por que? -ele franziu a testa. -Porque eu vou sumir daqui, e se eu fizer isso, sem antes... você sabe, terminar minha missão... não vai fazer sentido.
Levantei as mãos. Minhas pernas bambeavam.
-Vai sim. Você vai me deixar ir embora, e nada vai acontecer. Você vai para sua casa. Refazer a sua vida.
-Não. Não!
Duas lágrimas escorreram pelo rosto dele. De certo modo, naquele instante, eu entendia que doía tanto nele como em mim. Era como se tivéssemos chegado no fim da linha, na beira do penhasco para o fim da nossa história, e seria sangrenta. Seria o fim que ninguém nunca quer ouvir.
A mão de ChungHo tremia, quando ele usou uma para limpar as lágrimas do rosto.
-Você não entende que tudo que eu fiz foi para proteger você? -ele perguntou. -Absolutamente tudo. Desde o momento que seu pai morreu, eu soube que MinJi não seria capaz o suficiente para te afastar de tudo isso.
-Tudo isso o que?
-O mundo! E quando eu te vi beijando o Chanyeol... -sua voz vacilou e ele tomou fôlego. -Eu pensei em como você iria passar por tudo que eu passei, vocês dois seriam como eu e o Akira.
-Mas você iria ter se dado bem se não tivesse feito tudo isso! -eu já não me importava com a arma, o que quer que tivesse que acontecer, aconteceria. E eu não podia impedir. -Se tivesse me deixado viver minha vida, talvez nada disso precisasse estar acontecendo.
-As pessoas podem ser cruéis, Jimin. -ChungHo falou. -Elas podem pegar toda bondade que você tem, e transformar em algo horrendo. Elas podem te maltratar pelo simples fato de que na noite anterior, elas tinham te visto conversando perto de um rapaz. "Perto demais".
Ele abaixou a arma. Os braços, de repente, pareciam pesados demais para que ele os sustentasse.
-Você não sentiu nada disso, sentiu? Em nenhum momento... -ele parou para respirar. -Ninguém fez isso com você, não é?
Franzi a testa para ele, também já não me importava com as lágrimas que escorriam pelo meu rosto.
Neguei com a cabeça, e quando tentei falar, a voz saiu fraca demais:
-Não. Do que você está falando?
-Eles nunca te bateram por namorar um garoto, não é?
Balancei a cabeça com mais veemência e cobri a boca para abafar um soluço.
-Não.
ChungHo olhou para a arma nas suas mãos e suspirou.
Com a voz mais controlada possível, tentei fazê-lo desistir da ideia da arma. Assim como eu vira em vários filmes pessoas fazendo.
-Por favor, deixa isso no chão. Não precisa terminar assim. Eu... eu sei, que você tentou me proteger. Só não foi do jeito certo.
ChungHo esfregou o rosto cansado e ergueu a cabeça.
-Jeito certo, hum? -ele riu. -Não há jeito certo.
Não me lembro bem dos instantes seguintes, mas lembro de ouvir uma sirene tocando alto na entrada da rua, e um disparo. No segundo seguinte eu estava caído no chão, dentro de mim, meus órgãos esquentavam e eu sentia algo quente escorrendo pela minha nuca. Eu não conseguia gritar, não conseguia me mover direito, e meus olhos pareciam registrar tudo lento demais.
Apenas vi uma imagem antes de que tudo se tornasse um breu, e essa foi a seguinte:
ChungHo estava parado ainda atrás do sofá. Nas mãos, a arma se movia lentamente da posição que, antes, estava apontada para mim. Agora o cano estava na direção do seu pescoço, logo abaixo do queixo. Eu tentei gritar, mas meu cérebro estava lento demais, e antes que o grito saísse, ou ele apertasse o gatilho, eu desmaiei.***
Oi, o próximo capítulo é o último. Ainda teremos um epílogo, e eu vou correr para terminar ainda esse ano.
Infelizmente, tentei por todo esse tempo dar o meu melhor e escrever algo realmente muito bom, mas ao meu ver, não saiu tão bom quanto o esperado. Não sei vocês, mas inspiração é algo difícil de achar para mim. Quando consigo, posso escrever até cinco capítulos sem parar, mas normalmente, a inspiração vem para outras coisas.
Agradeço muito à todos que acompanharam a fanfic desde o início, e que esperam por mais sempre. Sou extremamente grata.Adoro vocês,
A.P.
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The Cure - Jikook
Fanfiction"Devíamos amar quem quiséssemos, não é? Pessoas são pessoas." Jimin vivia sob ordens de um pai rigoroso. Jungkook era seu meio irmão, livre para fazer suas escolhas e forçado a aceitar aquele segundo casamento da sua mãe.