Prefácio + Roxo

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Prefácio

India

Monotonia. Pacatez. Asas cortadas.

Estas foram as palavras que, durante muito tempo, acreditei serem as únicas capazes de descrever a minha essência. Não me orgulhava, pelo contrário, mas acabei por me habituar. Hoje, ao contrário de todas as exageradas e irreais expectativas, anseio voltar à monotonia e à pacatez. Daria tudo para voltar ao passado e mudar o imudável; mudaria tudo, exceto a tarde no autocarro onde o conheci. Essa, sim, é a única memória de uma vida que pretendo cravar e guardar no meu coração porque, depois dele, tudo mudou. Mas, primeiro, teremos de recuar no tempo para quando tudo era cinzento; um tempo antes de toda a euforia, paixão e aventura.

Capítulo 1

Roxo

India

A noite passada foi terrível; a cama chegara a ser um sítio desconfortável onde as longas horas se passaram comigo a remexer-me entre os lençóis, e, para ajudar, o despertador não contribuiu para uma melhoria do meu humor matinal já tipicamente mau. Relutante, afastei os cobertores e segui o cheiro a torradas e a café; essa foi a única coisa capaz de me reconfortar numa manhã tão dolorosa. Todos já estavam sentados à mesa: o meu pai, já cansado da vida aos cinquenta, comia silenciosamente; a minha mãe, sempre alerta e irrequieta, estava desorientada a tentar beber o café, enquanto implorava aos meus irmãos para que parassem de discutir pela última fatia de queijo.

Uma típica manhã na família McConnel.

- Bom dia - saudei, juntando-me à confusão.

Tentei comer o pedaço de pão o mais rápido possível para não chegar tarde às aulas, outra vez. Nunca fui uma pessoa de manhãs. Para além do facto desagradável que era ter de acordar, não tinha energia suficiente para lidar com todas as exigências do dia. Muitas das vezes surgia o súbito e familiar cansaço, algo que aprendi a ignorar e que culpava pela minha má aptidão física. No entanto, quando se tornava demasiado, obrigava-me a parar para recuperar o fôlego que sempre desaparecia - aquela foi uma dessas vezes.

Depois da senhora de cabelo curto e de cara redonda se ter despedido do seu cachorro, seguimos caminho para o meu destino. A minha vizinha sempre tinha a gentileza de dar-me boleia, já que o seu posto de trabalho ficava a caminho dos portões enferrujados da escola. Sempre reinava a típica conversa fiada sobre o tempo durante as nossas viagens matinais.

- Disseram na rádio que hoje vai chover... - comentou agarrada ao volante, quase debruçada.

- Então ainda bem que trouxe o meu chapéu-de-chuva. - Gargalhei, mas Penny continuou seriamente concentrada na estrada.

Suspirei pelo ambiente constrangedor. Suspirei ainda mais por não saber manter uma conversa sobre chuva e mau tempo, mas ou falávamos sobre isso ou não falávamos de todo. Ajeitei a mochila ao finalmente chegar e olhei ao meu redor à procura de Ella, a rapariga que tinha o especial talento de chegar sempre atrasada.

- Alguém chegou cedo hoje! - provoquei mal a avistei.

Ella soltou um curto riso, pronta para reportar as suas frustrações matutinas, mas sugeri que nos apressássemos; não estava nos meus planos chatear o professor de Geografia por mais um típico atraso. Depois de duas horas que pareceram nunca ter fim, estava na companhia dos meus amigos como era habitual; Merida e Ella falavam entre si sobre tudo e sobre nada, e, por mais que quisesse participar na sua conversa, os meus olhos pesavam-me.

- India, já soubeste da novidade?

Chamou-me Merida, a mais baixa do grupo. Com uma face redonda decorada com invejáveis caracóis arruivados, era conhecida pela sua energia e riso contagiantes.

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora