Capítulo 22

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Naquela mesma tarde Charlie e eu fomos sentar na varanda. Esfriara de repente; o céu estava brilhante, ensolarado, mas o vento aumentava. O sr. Hatch entrara na casa para acender a lareira, e eu senti um leve odor de madeira queimada. Robin estava lá dentro também, preparando o jantar. Cantava, e sua voz alta, clara, ligeiramente desafinada, chegava até nós através da janela da cozinha.

O corte no meu pé não era muito sério. Lauren me levou até o pronto-socorro - Dakota foi junto, pois aborrecera-se por ter dormido durante todo o acontecimento - e retornei depois de uma hora, com seis pontos no pé, um curativo e um frasco de Tylenol com codeína. Mais tarde, Dakota e Lauren resolveram sair para jogar croqué, e Christian as acompanhou.

Charlie e eu bebíamos uísque com soda. Ela tentara me ensinar a jogar piquê ("pois era o jogo de Rawdon Crawley em Vanity fair"), mas eu demorava a aprender e as cartas foram abandonadas na mesa.

- Gostaria de não ter de voltar a Hampden amanhã -, ela disse.

- Gostaria de não voltar nunca mais -, falei. - Adoraria morar aqui.

- Bem, talvez seja possível.

- Como?

- Não agora. Quem sabe no futuro. No final do curso.

- Como assim?

Ela deu de ombros. - Bem, a tia da Robin não quer vender a casa, pois deseja mantê-la na família. Robin poderia comprá-la por uma mixaria quando completar vinte e um anos. E mesmo que não possa, Lauren tem tanto dinheiro que nem sabe o que fazer com ele. Se elas quisessem, comprariam a casa juntas. Fácil.

Assustei-me com uma resposta tão pragmática.

- Quero dizer, Lauren, quando terminar o curso - se é que vai terminá-lo -, só pretende encontrar um local onde possa escrever seus livros e estudar as Doze Grandes Culturas.

- Como assim, se terminar?

- Talvez ela não deseje isso. Pode se aborrecer. Já falou em largar tudo mais de uma vez. Não tem obrigação de permanecer aqui, e com certeza não precisa arranjar emprego.

- Acha que não? - Senti curiosidade. Sempre imaginei Lauren lecionando grego, em alguma universidade esquecida, porém excelente, do Meio-Oeste.

Charlie riu, irônica.

- Claro que não. Por que precisaria? Ela não necessita de dinheiro, e daria uma professora terrível. E Robin nunca trabalhou na vida. Creio que poderia morar com a mãe, se aturasse o marido dela. Preferirá viver aqui. Vanessa não estaria longe, além disso.

Beberiquei um pouco, olhando para as figuras distantes no gramado. Dakota, o cabelo caindo na testa, preparava-se para jogar, flexionando os joelhos e gingando o corpo como uma golfista profissional.

- Vanessa tem família? -, perguntei.

- Não -, Charlie disse, a boca cheia de gelo. - Tem duas sobrinhas, que odeia. Preste atenção, agora -, ela disse subitamente, erguendo-se da poltrona.

Olhei. No gramado, Dakota finalmente fez a jogada; a bola passou por fora dos arcos seis e sete, mas, incrível, bateu na estaca.

- Observe -, falei. - Aposto que ela vai tentar jogar novamente.

- Mas não vai conseguir -, Charlie disse, sentando-se novamente, os olhos ainda fixos no gramado. - Olhe para Lauren. Não vai deixar.

Lauren apontava para os arcos negligenciados, e mesmo de longe percebi que citava as regras do jogo. Dakota, a voz enfraquecida pela distância, reclamava inconformada, aos gritos.

- Minha ressaca já passou -, Charlie disse depois de um tempo.

- A minha também -, falei. A luz lançava longas sombras aveludadas no gramado dourado, e o céu nublado, radiante, estava claro para os lados de Constable; embora não quisesse admitir, mesmo depois de tudo que aconteceu no dia, eu estava meio bêbada.

Permanecemos em silêncio por algum tempo, observando o jogo. Do gramado vinha o ruído débil do malho ao atingir a bola de croqué; da janela, superando o retinir das panelas e o bater das portas dos armários, vinha a voz de Robin, que cantava, como se aquela fosse a música mais divertida do mundo: "We are little black sheep who have gone astray...Baa baa baa..."

- No caso de Robin comprar a casa -, perguntei finalmente, - acredita que ela nos deixará morar aqui?

- Claro. Morreria de tédio se vivesse sozinha com Lauren. Calculo que Dakota precise trabalhar no banco, mas poderá nos visitar nos finais de semana, se deixar Brian e os filhos em casa.

Ri. Dakota contara na noite anterior que desejava ter oito filhos, quatro meninos e quatro meninas; isso provocou um longo e sério discurso de Lauren sobre o modo como o cumprimento do ciclo reprodutivo era, na natureza, pronúncio invariável do rápido declínio da morte.

- É terrível -, Charlie disse. - Realmente, já a imagino parada na cozinha, usando um avental ridículo.

- Preparando a janta.

- Tendo em volta uns vinte filhos, correndo e gritando.

- Meu Deus.

Um vento súbito agitou as bétulas; uma revoada de folhas amarelas soltou-se das árvores. Tomei um gole da minha bebida. Se tivesse crescido naquela casa, não gostaria tanto dela, não teria me familiarizado tanto com o rangido das portas de vaivém, com o padrão das clematites na treliça, ou com as ondas aveludadas do terreno, que se perdiam cinzentas no horizonte, onde se avistava - de leve - a estrada, no alto do morro, atrás das árvores. As próprias cores do local pareciam ter se infiltrado em meu sangue: assim como Hampden, nos anos subsequentes, sempre se apresentaria como um redemoinho confuso de branco, verde e vermelho em minha imaginação, a casa de campo surgia de repente numa gloriosa mistura de cores suaves de aquarela, marfim e lápis-lazúli, castanho e laranja-queimado e ouro. Apenas aos poucos os elementos tomavam forma: a casa, o céu, os pés de borbo. Mesmo naquele dia, ali na varanda, tendo Charlie a meu lado e o cheiro de madeira queimada no ar, ela já se parecia com uma recordação; estendia-se perante meus olhos e, no entanto, era linda demais para ser verdadeira.

Escurecia; logo chegaria a hora do jantar. Terminei minha bebida num gole. A idéia de morar ali, sem ter que voltar nunca mais ao asfalto ou aos shoppings centers e móveis modulares; de viver ali com Lauren, Robin, Charlie e Christian, e quem sabe até com Dakota; sem que ninguém se casasse nem arranjasse emprego num cidade a mil quilômetros de distância, nem fizesse qualquer das coisas traiçoeiras que os amigos fazem quando terminam a universidade; idéia de que tudo permancesse como estava, naquele instante - a idéia era tão celestial que mesmo sabendo, desde aquela hora, que jamais se realizaria, eu gostava de acreditar nela.

Robin tentava um final grandioso para sua canção. "Gentlemen songstress off on a spree... Doomed from here to eternity..."

Charlie me olhou de esguelha.

- E quanto a você? -, ela disse.

- Como assim?

- Você não tem nenhum projeto? - Ela riu. - O que pretende fazer nos próximos quarenta ou cinquenta anos de sua vida?

No gramado, Lauren acabava de atirar a bola de Dakota uns vinte metros para fora do campo. Seguiu-se uma gargalhada entrecortada de Lauren; fraca, porém clara, chegou a mim trazida pelo ar frio da noite. Aquela gargalhada me persegue até hoje.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora