Capítulo 36

24 2 1
                                    

A frase saiu mais como uma afirmação do que como uma pergunta. Ela nem piscou, esperou que eu prosseguisse.

- Então? São ou não são?

Lauren debruçou-se para apagar o cigarro no cinzeiro.

- Claro que sim. -, ela disse cordial, fria como soldado russo. - Sabe disso tão bem quanto nós.

Trocamos olhares por um momento.

- O que fizeram exatamente? -, perguntei.

- Bem, na verdade penso que não precisamos entrar neste tipo de detalhe agora. -, ela disse suavemente. - Existe um certo envolvimento carnal nos procedimentos, mas o fenômeno é basicamente espiritual, em sua natureza.

- Você viu Dionísio, suponho.

Não falei aquilo a sério, e espantei-me quando ela fez que sim, tranquilamente, como se confirmasse que terminou a lição de casa.

- Você o viu corporificado? O tirso? O pele de cabra?

- Como você poderia conhecer a forma de Dionísio? -, Lauren perguntou ofendida. - O que acha que vimos? Uma caricatura? Um desenho igual ao dos vasos?

- Mas não posso acreditar que vocês realmente viram...

- E se você nunca tivesse visto o mar na vida? E se conhecesse apenas desenhos infantis _ lápis azul, ondas crespas? Reconheceria o mar real se o tivesse visto apenas no desenho? Saberia identificar o oceano quando o visse? Você não faz a menor ideia da aparência de Dionísio. Estamos falando de um deus. E deuses são um caso sério. - Ela se recostou novamente na poltrona e me analisou. - Você não precisa acreditar em mim, sabe -, ela disse. - Éramos quatro, lá. Charlie tem uma marca de mordida no braço, chegou a sangrar, e ela nem desconfia como ela foi feita. Com certeza, não é humana. Grande demais. E deixou estranhas perfurações em vez de sinais dos dentes. Christian disse que por algum tempo pensou ser um cervo; estranho, pois o resto de nós se lembra de ter caçado um cervo no bosque. Tivemos a impressão de que a perseguição durou quilômetros. E durou mesmo, isso é um fato. Ao que parece corremos muito, sem parar, pois quando voltamos a nossas personalidades, não sabíamos onde estávamos. Depois concluímos ter cruzado pelo menos quatro cercas de arame farpado, embora eu não possa dizer como, e estávamos muito afastados da propriedade da Robin, a dez ou quinze quilômetros, no meio do mato. E foi aí que ocorreu a parte infeliz da história. Guardo apenas uma vaga lembrança desta parte. Alguma coisa, ou alguém, provocou um ruído atrás de mim, e dei meia-volta, quase perdendo o equilíbrio, para atacar o que quer que fosse _ um vulto amarelo, indistinto, enorme _ com o punho esquerdo, que não é o mais forte no meu caso. Senti uma dor terrível nos nós dos dedos, e depois, quase instantaneamente, algo me atingiu, e perdi totalmente o fôlego. Estava escuro, lembre-se; eu não via quase nada. Ataquei de novo, com a direita, com toda força, jogando o peso do corpo no golpe, e desta vez ouvi um estalo e um grito. - Ela disse desviando o olhar para o chão. - Não sabemos direito o que aconteceu depois. Christian estava bem à frente, mas Charlie e Robin vinham logo atrás e me alcançaram. Eu guardo a lembrança nítida de me levantar e ver as duas correndo pelo mato. Meu Deus, posso vê-las agora. Os cabelos cheios de folhas e lama, as roupas transformadas em farrapos. Pararam, de olhos vidrados, ofegantes e hostis _ não reconheci nenhuma das duas, creio que teriam começado a lutar se a lua não saísse de trás das nuvens. Olhamo-nos. As coisas começaram a voltar ao normal. Olhei para minhas mãos, estavam cobertas de sangue, e algo pior do que sangue. Em seguida Charlie deu um passo à frente e ajoelhou-se para examinar algo a meus pés. Eu também me abaixei e percebi que era um homem. Ele estava morto. Tinha cerca de quarenta anos, vestia camisa amarela xadrez _ do tipo que costumam usar por aqui, sabe _ e fraturara o pescoço. Seu cérebro se espalhava pelo rosto. Realmente, não sei o que aconteceu. Foi uma confusão terrível. Fiquei coberta de sangue, tinha sangue até nos óculos. Charlie contou uma história diferente. Ela se lembra de me ver ao lado do corpo. Mas diz que se recorda também de lutar contra alguém, puxar com toda a sua força, e de repente perceber que puxava o braço de um homem, com o pé apoiado na axila dele. Robin... bem, não posso garantir nada. A cada vez, ela se lembra de algo diferente.

- E Christian? -, perguntei impressionada.

Lauren suspirou.

- Suponho que jamais saberemos o que aconteceu -, ela disse. - Só o localizamos bem mais tarde. Estava sentado, calmo na margem de um riacho, com os pés na água, a túnica imaculadamente branca, sem sangue algum a não ser no rosto e nas mãos.

- Como isso pôde ter acontecido?

- Não saberemos. -, Ela acendeu outro cigarro. - De qualquer maneira, o sujeito morreu. E nós estávamos no meio do mato, meio nuas, cobertas de lama e sangue, tendo na frente um cadáver. Confusa. Eu perdia e recuperava a consciência, quase dormi; mas Robin debruçou-se para olhar melhor o cadáver e sofreu um violento ataque de náusea. Com isso recuperei a lucidez. Disse a Charlie para procurar o Christian e depois ajoelhei-me para revistar os bolsos do sujeito. Não encontrei muita coisa _ alguns documentos com o nome dele _ que ajudasse. Eu ignorava como proceder. Lembre-se, estava ficando frio, passáramos dias sem comer nem dormir, e minha mente perdera a clareza. Por alguns minutos _ minha nossa, quanta confusão nisso tudo _ pensei em cavar uma cova, mas concluí que seria loucura. Não poderíamos passar a noite inteira ali. Não sabíamos onde estávamos, nem o que aconteceria depois, nem que horas eram. Além disso, não possuímos ferramentas para cavar. Por um momento, quase entrei em pânico _ não dava para deixar o corpo em campo aberto, certo? _, mas depois me dei conta de que seria a única coisa a fazer. Meu Deus. Nem lembrávamos onde o carro estava. Não conseguia me imaginar arrastando o corpo morro acima por sei lá quanto tempo; e mesmo que chegássemos ao carro, para onde o levaríamos? Portanto, quando Charlie voltou com Christian, fomos embora. Em retrospecto, vejo que essa foi a melhor saída. Não haveria uma equipe de legistas examinando tudo, revirando o Norte de Vermont. Este é um lugar primitivo. As pessoas morrem de causas violentas com frequência. Nem sabíamos quem era o sujeito; nada nos ligava a ele. Só precisávamos encontrar o carro e voltar para casa sem que alguém nos visse. -, Ela se debruçou para pegar mais scotch. - Foi exatamente o que fizemos.

Eu também peguei outra dose, e permanecemos sentadas em silêncio por mais um minuto.

- Lauren -, falei, - meu Deus do céu.

Ela ergueu uma sobrancelha.

- Sério, foi mais desagradável do que você imagina -, ela disse. - Certa vez, atropelei um cervo com meu carro. Era uma linda criatura, e vê-lo estrebuchar sangrando, patas quebradas... Bem, isso foi muito pior, mas pelo menos havia acabado logo. Jamais imaginei que haveria uma sequência. - Ela deu um gole no scotch. - Infelizmente, não foi bem assim. Dakota não deixou que fosse.

- O que quer dizer?

- Você a viu hoje de manhã. Está nos deixando loucos com isso. Cheguei ao limite da minha paciência.

Ouvi o som da chave girando na fechadura. Lauren ergueu o copo e bebeu o resto do uísque num longo gole.

- Deve ser a Robin -, ela disse, acendendo a luz da sala.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora