Capítulo 47

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Como uma mente complexa, nervosa e delicadamente ajustada como a minha foi capaz de se adaptar perfeitamente após um choque como o assassinato do fazendeiro, enquanto a de Dakota, aparentemente mais robusta e empedernida, entrou em colapso? Ainda ...

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Como uma mente complexa, nervosa e delicadamente ajustada como a minha foi capaz de se adaptar perfeitamente após um choque como o assassinato do fazendeiro, enquanto a de Dakota, aparentemente mais robusta e empedernida, entrou em colapso? Ainda penso nisso, às vezes. Se Dakota só queria vingança, poderia tê-la conseguido com facilidade, sem se expor a riscos desnecessários. O que pensava obter com aquela tortura lenta e explosiva? Teria algum objetivo em mente, alguma meta? Ou suas atitudes eram tão inexplicáveis para ela quanto para nós?

Ou, talvez, não fossem tão inexplicáveis assim. Pois em realidade, Charlie lembrou certa vez, que não ocorrera uma mudança total da personalidade da Dakota, um surto esquizofrênico, e sim o crescimento dos diversos componentes desagradáveis de sua personalidade que até então se manisfestavam esporadicamente e passaram a agir em conjunto, ampliados, com força assustadora. Por mais que seu comportamento fosse revoltante, já o conhecíamos, de modo mais diluído, menos virulento. Mesmo na época mais tranquila ela zombava do meu sotaque californiano, do sobretudo de segunda mão e do meu quarto despojado, onde não havia bibelôs de bom gosto, embora ela fizesse esses comentários sempre de maneira tão engenhosa que eu só me divertia. ("Minha nossa, Camila -, ela diria, ao erguer minha meia calça preta e velha para mostrar os rasgos, - qual é o problema das garotas de Santa Mônica? Quanto mais ricas, mais miseráveis parecem. Você nem vai ao salão para dar um jeito nesse cabelo. Daqui a pouco seu cabelo vai crescer e armar tanto que a veremos andar por aí usando trapos como Janis Joplin.") Jamais me ocorreu ficar ofendida; aquela era Dakota, minha amiga, que tinha menos dinheiro no bolso do que eu e um rasgo na borda da saia ainda por cima. Boa parte de meu horror por sua nova atitude derivava da semelhança com o comportamento antigo, com sua forma afetuosa de zombar de mim, e seu súbito abandono das antigas regras equivalia - como quando ficávamos nadando na piscina comunitária de Hampden e brincávamos de afogar uma a outra - a ela começar a tentar me afogar por motivos duvidosos, longe de serem brincadeira.

Mesclado a tudo isso - em oposição a tantas situações desagradáveis - restava muita coisa da antiga Dakota, a amiga que eu conhecia e amava. Por vezes, ao vê-la à distância - mãos nos bolsos, assobiando, caminhando com seu ar despreocupada -, eu sentia uma mistura de afeição e arrependimento. Eu a perdoava cem vezes, apenas com base num olhar, num gesto, no jeito de balançar a cabeça. Parecia-me impossível que alguém sentisse raiva dela, independente do que fizesse. Infelizmente, ela escolhia momentos assim para atacar. Mostrava-se cordial, afetuosa, jogando conversa fora como de costume, apenas para se recostar na poltrona e no mesmo ritmo despejar coisas tão horrendas, maliciosas, traiçoeiras, que eu jurava jamais esquecer daquilo e jamais perdoá-la de novo. Quebrei a promessa inúmeras vezes. Estava a ponto de dizer que era uma promessa que afinal mantive, mas não seria verdade. Mesmo atualmente não consigo sentir por Dakota nada parecido com raiva. De fato, ainda hoje imagino ela entrando em meu quarto, de óculos embaçados , cheirando a lã molhada, esfregando o cabelo para tirar as folhas das árvores, como uma ativista comunista dizendo: "Mila, minha cara, o que tem aí para oferecer a uma amiga sedenta?"

A gente gosta de acreditar que existe um fundo de verdade no velho ditado: Amor vincit omnia. Mas eu aprendi algo em minha vida breve e triste: este ditado é falso. O amor não vence tudo. E quem acha isso é um idiota.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora