Acordei de um sono leve, sem sonhos, abraçando meu travesseiro como se ele fosse alguém que deveria estar ali. Lauren não estava na cama comigo. Constei isso depois de uns minutos. Onde diabos ela está?
Permaneci imóvel por algum tempo, tentando lembrar dos beijos e do cheiro dela, mas aquela sensação agradável abruptamente transformou-se em pesar quando me recordei da conversa na noite anterior. Dakota estava sendo um problema para eles; Lauren aparentemente não confiava em mim totalmente; Sentei-me e esfreguei meu rosto numa tentativa de me acordar para a dura realidade.O movimento causou dor de cabeça. Olhei para a minha janela que estava semi aberta, o sol matinal entrando e transbordando o ambiente com sua luz. Algumas peças de roupa estavam no chão, as folhas do trabalho que eu teria que entregar hoje para a Vanessa estavam em cima da mesa esperando a minha atenção. Por fim, conclui, eu não havia sonhado; a noite fora real.
Tentei voltar a dormir mas era impossível. Livrei-me da tontura que me incomodava, me espreguicei o máximo que pude e olhei novamente para os papéis em cima da mesa. Eram sete da manhã e hoje a aula de composição em grego começava em duas horas e eu não havia feito minha lição de casa.
A tarefa consistia num ensaio de duas páginas, em grego, sobre um epigrama de Calímaco, de livre escolha. Só terminara a primeira página e apressei-me em escrever o restante, impaciente e um tanto desonesta, pois redigi em inglês e traduzi palavra por palavra. Vanessa pedira que não trabalhássemos deste modo. O valor da composição em prosa, no grego, afirmava ela, não se encontrava no aumento do domínio do idioma, o que poderia ser conseguido por diversos outros métodos, mais fácies, e sim no fato de ensinar o estudante a pensar em grego, quando adequadamente realizava. Os padrões de pensamento se modificavam, ela dizia, quando forçados ao confinamento de uma língua rígida e pouco familiar. Certas ideias comuns tornavam-se impossíveis de expressar; outras, jamais cogitadas, ganhavam vida, encontrando uma nova articulação milagrosa. É necessariamente difícil, suponho, explicar com exatidão o que quero dizer. Como fazer com que os outros vejam essa luz estranha, áspera, que penetra nas paisagens de Homero e ilumina os diálogos de Platão, essa luz alienígena, impossível de se articular em nossos idiomas comuns? A língua que compartilhamos é o idioma do intricado, do particular, adequada a sitiantes e marginais, a passageiros do metrô e bebedores de cerveja; embora eu a considere inteiramente apropriada para reflexões deste gênero, ela falha completamente quanto tento descrever, empregando-a, o que amo no grego, um idioma inocente de todos os subterfúgios e trocadilhos, um idioma obcecado pela ação e pelo júbilo de ver a ação se multiplicar dentro da ação, da ação a marchar incansável para frente, sempre plena de mais ações a preencher seus flancos e a acompanhar a ordem unida da retaguarda, numa longa fila direta de causa e efeito, em direção ao inevitável, ao único final possível.
Em certo sentido, era por isso que eu me sentia tão próxima dos outros no curso de grego. Eles também conheciam esta paisagem deslumbrante e aflitiva, morta havia séculos; eles compartilhavam a experiência de erguer a vista dos livros, com olhos do século V, e encontrar um mundo desconcertante em sua indolência e isolamento, como se não fosse aqui seu lar. Por isso admirava Vanessa, e Lauren em particular. Seu raciocínio, seus próprios olhos e ouvidos se fixavam inequívocos nos confins daqueles ritmos duros e antigos - o mundo, de fato, não era seu lar, pelo menos não o mundo como eu o conhecia - e, longe de se comportarem como visitantes ocasionais da terra que eu conhecia apenas como turista embevecida, agiam como moradoras permanentes, tão permanentes, suponho, como era possível que fossem. O grego arcaico era uma língua difícil, uma língua muito difícil mesmo, e é inteiramente possível estudá-la a vida toda e continuar incapaz de falar uma só palavra; ainda hoje sorrio ao pensar no inglês ponderado, formal da Lauren, o inglês de uma estrangeira instruída, em comparação com sua fluência e segurança em grego - ágil, eloquente, espantosamente espirituosa. Sempre me deliciava ouvindo os diálogos entre ela e Vanessa em grego, suas discussões e zombarias, como jamais faziam em inglês, que eu saiba; muitas vezes no apartamento da Lauren, quando estávamos somente nós duas prestes a dormir o telefone tocava insistente e via Lauren erguer do gancho o aparelho com um "alô" irritado e cauteloso, e jamais me esquecerei de seu regozijo irresistível quando descobria Vanessa na outra ponta da linha e dizia: "Khairei!".
VOCÊ ESTÁ LENDO
A História Secreta - Camren
Fanfiction...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...