Capítulo 27

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Eu me lembro do carro da Lauren, das luzes e das pessoas debruçadas sobre mim, e de que me forçaram a sentar quando eu não queria, e também me lembro de alguém tentando tirar sangue de mim, e de que reclamei, debilmente. Mas só me recordo claramente de num dado momento ter sentado e percebido que estava num quarto pouco iluminado, branco, instalada num leito de hospital, com uma intravenosa no braço.

Lauren ocupava a poltrona perto da cama e lia com a luz de cabeceira acesa. Abandonou o livro quando me viu despertar.

- O corte não foi sério -, ela disse. - Estava limpo, era superficial mas você levou alguns pontos.

- Estou na enfermaria?

- Você está em Montpelier. Eu a trouxe para o hospital.

- E para que a intravenosa?

- Disseram que você pegou uma pneumonia. Quer ler algo? - Ela perguntou afável.

- Não obrigada. Que horas são?

- Uma da manhã.

- Mas pensei que você estivesse em Roma.

- Voltei há umas duas semanas. Se prefere voltar a dormir, posso pedir à e enfermeira que lhe dê um remédio.

- Não, obrigada. Por que não me procurou antes?

- Porque não sabia onde você morava. Deixou a faculdade como endereço de correspondência apenas. Esta tarde andei indagando por aí. Por falar nisso, como é mesmo o nome da cidade onde moram seus pais?

- Santa Mônica. Por que?

- Pensei em ligar para eles.

- Não precisa -, falei, ao me deitar novamente. O soro intravenoso era como gelo em minhas veias. - Fale sobre Roma.

- Está bem -, ela disse, e começou a falar calmamente das terracotas etruscas da Villa Giulia, dos lagos com lírios e das fontes do lado de fora, no ninfeu. E da Villa Borghese e do Coliseu, da vista do Palatino no início da manhã, e no quanto deveriam ser belos os banhos de Caracala,  no tempo dos romanos, com seus mármores e bibliotecas e no calendário enorme, circular, e no frigidário, com a imensa banheira vazia, que ainda estava lá até hoje, e provavelmente sobre um monte de outras coisas, das quais nem me recordo, pois dormi.

Passei quatro noites no hospital. Lauren ficou praticamente todo o tempo a meu lado, trazendo refrigerantes quando eu pedia, bem como um pente e uma escova de dentes, além de me emprestar seu pijama - algodão egípcio sedoso, cor de creme, muito macio, com as iniciais LMJ (o M de Morgado) bordadas em letras finas escarlates no bolso. Ela também trouxe papel e lápis, para as quais eu teria pouco uso mas que, suponho, eram fundamentais para ela, bem como um monte de livros, metade deles em idiomas que eu não compreendia, e outra metade que também não compreendi, de tão difíceis. Certa noite - a cabeça doendo de tanto Hegel e a temperatura do meu corpo caindo e subindo toda hora - pedi-lhe que se deitasse comigo na cama um pouco estreita e tentasse me aquecer. Ela tirou as botas, o casaco preto e as demais blusas e ficou apenas de sutiã. Sem se importar com minha reação patética de admiração pelos seios fartos, ela deitou-se ao meu lado e me virou de modo que eu ficasse com a cabeça deitada nos seus seios e meus braços quase que instintivamente rodearam sua barriga. Pouco conversamos naqueles quatro dias. Durante a maior parte do tempo ela ficava deitada comigo na mesma posição e eu a agradecia internamente pois sua pele era quentinha e lisa, tão pálida que suas veias verdes me distraiam com facilidade. Nos provocavámos sutilmente com respirações na orelha, pelos da nuca arrepiados, minhas pernas em cima das suas. Ela permanecia a meu lado nas noites difíceis, quando eu sentia dificuldade em respirar e o peito doía tanto que nem me deixava dormir.

Certa vez, quando a enfermeira do turno atrasou em três horas meus medicamentos, Lauren a seguiu, o rosto impassível, até o corredor e passou-lhe um sermão, em seu tom monótono e persuasivo, tão eloquente e tenso que a enfermeira (uma mulher arrogante, empedernida, que tingia os cabelos como uma garçonete de meia-idade, sempre com um comentário ácido na ponta da língua, para todos) compadeceu-se de mim; depois disso ela - que trocava os curativos do soro intravenoso com rispidez e me enchia de hematomas em sua busca descuidada das veias - passou a me tratar com mais carinho, e uma vez, ao tirar a temperatura, até me chamou de "meu bem".

O médico do pronto-socorro afirmou que Lauren salvara a minha vida. Um comentário dramático e gratificante de se ouvir - que repeti a várias pessoas -, que secretamente eu achava que ele estava exagerando. Nos anos seguintes, contudo, passei a dar-lhe razão. Quando era mais jovem, eu me considerava imortal. E apesar de minha recuperação ter sido rápida, em curto prazo, Por outro lado jamais superei completamente aquele inverno. Desde então tenho problemas nos pulmões, meus ossos sofrem com a menor queda de temperatura e pego resfriados com facilidade, o que não ocorria antes.

Relatei a Lauren o meu diálogo com o médico. Ela não gostou. Franziu a testa e fez um comentário seco. Na verdade, nem me lembro do que ela disse, por incrível que pareça. Fiquei muito constrangida e não toquei mais no assunto. Continuo segura de que ela me salvou. E, se em algum lugar existe o livro das boas ações, ao lado de seu nome há uma estrela dourada.

Puxa, estou ficando sentimental. Às vezes, quando penso nestas coisas fico mesmo.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora