Desde o primeiro momento em que coloquei os pés em Hampden passei a temer o final do período, quando teria que voltar a Santa Mônica, a terra chata dos postos de gasolina e do pó. Conforme o período letivo avançava, a neve aumentava e as manhãs escureciam cada vez mais, eu me aproximava da data borrada na folha mimeografada ("Todos os trabalhos devem ser entregues até 17 de dezembro") que havia colado na porta do armário e minha melancolia se transformava em desespero. Não suportaria passar o Natal na casa de meus pais, com sua árvore de plástico e a tevê ligada o tempo inteiro. Além disso, meus pais não morriam de vontade de me receber. Nos últimos anos passaram a sair com um casal tagarela, sem filhos, mais velhos do que eles, os MacNatt. O sr. MacNatt vendia peças de automóveis; sra. MacNatt, produtos Avon, e tinha cara de pomba. Convenciam meus pais a pegar ônibus para fazer compras em lojas de fábrica, a participar de um jogo de dados chamado bunko e a frequentar o piano-bar do Ramada Inn. Essas atividades ganhavam ímpeto nas férias, e minha presença, por mais breve e irregular que fosse, era considerada um estorvo e era, de certa forma, lamentada.
Mas as férias constituíam apenas metade do probelma. Um vez que Hampden situava-se bem ao norte, seus prédios eram antigos e custava caro aquecê-los, a universidade fechava nos meses de janeiro e fevereiro. Já ouvia meus pais, meio alterados pelo álcool, reclamando de mim para o sr. e a para a sra. MacNatt, que astutamente os espicaçava, insinuando em seus comentários que eu era muito mimada e que eles jamais permitiriam que sua filha se aproveitasse deles, caso tivesse uma. Com isso, provocava em pai um ataque de fúria; no final, ele acabava entrando dramaticamente em meu quarto, o dedo em riste, trêmulo, rolando os olhos como Otelo. Encenara este drama diversas vezes quando eu estava no ginásio e no colégio na Califórnia, sem nenhum motivo fora a vontade de exibir sua autoridade masculina na frente da minha mãe e de seus amigos. Eu era sempre aceita de volta, assim que ele se cansava das atenções, e permitia que minha mãe "usasse o bom senso" para resolver o caso. Mas e agora? Eu nem tinha mais quarto próprio; em outubro recebi uma carta da minha mãe explicando que vendera a mobília do meu quarto e aproveitaria o espaço para fazer um quarto de costura.
Lauren e Dakota iriam à Itália nas férias de inverno, para conhecer Roma. Surpreendi-me ao saber disso, no início de dezembro, em especial porque as duas andavam brigando havia mais de um mês, sobretudo Lauren. Dakota, eu sabia, a atormentava continuamente, pedindo dinheiro, e embora Lauren reclamasse, parecia estranhamente incapaz de recusar. Deduzi que o problema não era o dinheiro em si, mas uma questão de princípio; também calculei que Dakota não se dava conta da tensão existente.
Dakota só sabia falar da viagem. Comprou roupas, guias turísticos, um disco chamado Parliamo italiano, que prometia ensinar italiano ao freguês em duas semanas ou menos ("Mesmo que você não tenha sorte com cursos de idiomas!", gabava-se a capa), e um exemplar do Inferno, em tradução de Dorothy Sayers. Ela sabia que eu não tinha para onde ir nas férias de inverno e adorava jogar sal nas minhas feridas.
- Pensarei em você quando estiver bebendo Campari e passeando de gôndola. - Ela me disse uma vez, piscando.
Lauren pouco comentava sobre a viagem. Enquanto Dakota tagarelava, ela permanecia quieta, sentada, tragando com força o cigarro e fingindo não compreender o italiano falsificado da Dakota. Quando questionei Lauren sobre essa viagem ela foi escassa, disse que precisava fazer isso e embora tenha sido estranho por diversos fatores, eu respeitei sua decisão. Na época sequer havíamos nos beijado ainda. Eram apenas abraços apertados e demorados, sorrisos cúmplices e carinhos íntimos. Sempre que eu achava que estávamos num momento perfeito para finalmente nos beijarmos, ela desviava, com as bochechas rubras, pedindo desculpas e fugindo de mim o mais depressa possível, mas ainda assim, depois no meio da noite ela aparecia no meu quarto e em silêncio deitava comigo na cama sem malícia alguma e dormiamos até o sol raiar e ela ir embora silenciosamente.
Robin disse que adoraria me levar a Boston para passar o Natal e depois viajar comigo para Nova York; os gêmeos telefonaram para a avó na Virgínia e ela aceitou com prazer me receber lá, também, até o final das férias de inverno. Mas eu necessitava de dinheiro. Teria que arranjar um emprego até o início só semestre seguinte. Para poder voltar na primavera, precisava de dinheiro, e não trabalharia caso saísse a passear com Robin. Os gêmeos tinham emprego garantido no escritório do tio advogado, que sempre os contratava nas férias, mas já era difícil encontrar tarefas para preencher o tempo dos dois. Christian levava o tio Orman a leilões imobiliários e liquidações. Charlie permanecia no escritório, para atender o telefone que nunca tocava. Estou certa de que jamais lhes ocorreu que eu precisava de um emprego também - todas as minhas histórias de richesse californiana funcionaram mais do que eu esperava.
- O que vou fazer enquanto vocês trabalham? -, perguntei aos dois, esperando que entendessem a sugestão, mas não perceberam nada, claro.
- Creio que não há muita coisa a fazer lá -, Christian disse, desculpando-se. - Pode ler, conversar com a Nana, brincar com os cachorros.
Minha única opção, pelo jeito, era ficar na cidade de Hampden. O dr. Pearlman estava disposto a garantir meu serviço, embora pagando um salário que não cobriria um aluguel decente. Charlie e Christian haviam sublocado o apartamento deles, e Robin emprestara o seu a um primo adolescente; o de Lauren, pelo que sabia, permaceria vazio, mas ela não o ofereceu, e eu era orgulhosa demais para pedir. A casa de campo estaria vazia também, mas ficava a uma hora de Hampden, e eu não tinha carro. Foi então que ouvi falar de uma velha hippie, ex-aluna de Hampden, que possuía uma oficina de conserto de instrumentos musicais num galpão abandonado. Ela deixaria alguém morar no depósito de graça se a pessoa preparasse umas cavilhas e lixasse alguns bandolins de vez em quando.
Em parte por não querer que a piedade ou o desprezo alheio me incomodassem, ocultei os detalhes que cercavam minha decisão. Indesejável nas férias para meus pais glamurosos e inúteis, decidira permanecer em Hampden (em local não especificado) e estudar grego, recusando, por orgulho, as ofertas de dinheiro por parte deles.
Este estoicismo, a dedicação aos estudos, digna de uma Lauren, e o desprezo geral pelas coisas do mundo provocaram a admiração de todos, e de Lauren em especial.
- Eu não me importaria de passar o inverno aqui -, ela disse numa noite desolada de novembro, quando andávamos para casa, voltando de Charlie e Christian, os sapatos mergulhos até os tornozelos nas folhas molhadas que cobriam o caminho. - A universidade estará em recesso, as lojas da cidade fecharão às três da tarde. Tudo vai ficar branco e vazio, e não haverá outro barulho fora o vento. Nos velhos tempos a neve se acumularia até chegar ao telhado, as pessoas ficariam presas em suas casas e morreriam de fome. Só seriam encontradas na primavera. - Sua voz era sonhadora, calma, mas me encheu de temores. Onde eu morava antes nem sequer nevava.
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A História Secreta - Camren
Fanfiction...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...