Capítulo 20

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Hoje concluo que estava quase sempre presente e, no entanto, sabia muito pouco do que acontecia no final daquele período. Fisicamente, apareciam sinais de que havia algo acontecendo - eles eram espertos demais - e até mesmo as discrepâncias insignificantes que varavam suas barreiras de proteção deparavam-se, por assim dizer, com minha cegueira intencional. Os seja: eu desejava manter a ilusão de que se portavam de maneira totalmente aberta em relação a mim, de que éramos todos amigos, sem segredos, embora os fatos demonstrassem que havia muitas coisas não compartilhadas comigo, e assim seria, ainda por algum tempo. E por mais que eu tentasse ignorar tais sinais, tinha consciência deles o tempo inteiro. Sabia, por exemplo, que os cinco por vezes faziam coisas - o quê exatamente eu ignorava - sem me convidar, e quando apertados, eles se uniam para mentir, de um modo casual e bem convincente. Na verdade, eram tão convincentes, orquestravam tão impecavelmente as variações e os contrapontos da falsidade (a descontração inocente dos gêmeos conferindo um tom verossímil à atrapalhação de Dakota, ou a irritação entediada de Lauren em reproduzir uma sequência trivial de eventos), que em geral eu acabava por acreditar neles, mesmo havendo prova contrária.

Claro, posso me recordar de algumas pistas - admito, em favor deles, que eram pistas mínimas - em retrospecto. Como o desaparecimento repentino, misterioso, e a reticência posterior em contar aonde haviam ido; nos comentários cifrados, em grego ou latim, para evitar que eu os compreendesse. Naturalmente, eu não gostava disso, mas não percebia nada de anormal ou alarmante; contudo, certas brincadeiras e observações casuais assumiram um significado horrível depois. No final do período escolar, por exemplo, Dakota adquiriu o hábito exasperante de cantar trechos de The farmer in the dell; para mim, era simplesmente cansativo, não entendia a violenta comoção que provocava nos outros; pois na época não sabia, como sei hoje, que isso deve tê-los gelado até os ossos.

Percebia algumas coisas, claro. O contrário seria impossível, suponho, convivendo tanto com eles. Mas não passavam de pequenas contradições, discrepâncias, em sua maioria tão pequenas que servem para mostrar como praticamente inexistiam motivos para imaginar que havia algo errado. Por exemplo: os cinco sofriam acidentes demais. Viviam arranhados por gatos, cortando o rosto ao fazer a barba, tropeçando em banquetas no escuro - explicações razoáveis, admito, mas para pessoas sedentárias exibiam pequenos ferimentos e hematomas em excesso. Chamava a atenção também a estranha preocupação com o clima; estranha, para mim, pois nenhum deles se dedicava a atividades facilitadas ou dificuldades pelo tempo. Apesar disso, viviam obcecados pelas mudanças climáticas, Lauren em particular. Ela controlava, sobretudo, quedas bruscas na temperatura; por vezes, no carro, percorria o dial do rádio freneticamente, como um capitão no mar antes da tempestade, em busca de dados barométricos, previsões de alcance mais amplo ou detalhes de qualquer tipo. Saber que a coluna de mercúrio estava baixando provocava-lhe uma depressão repentina, inexplicável. Imaginava o que ela faria quando chegasse o inverno; mas, na primeira nevada, sua preocupação desapareceu, para não voltar mais.

Pequenas coisas. Eu me lembro de acordar certa vez na casa de campo, sozinha na cama (Lauren tinha o hábito de no meio da noite ir discretamente para a minha cama e simplesmente dormir comigo até o sol nascer para assim ir para seu quarto sem que ninguém percebesse), às seis da manhã, quando todos ainda estavam na cama, e descer até a cozinha, encontrando os ladrilhos do piso recém-lavados, ainda úmidos, imaculados, a não ser pela pegada misteriosa de um serviçal dedicado, na areia, entre o aquecedor de água e o pórtico. Por vezes eu acordava à noite, quando estava lá, sem Lauren do meu lado, em meio ao devaneio, embora vagamente consciente de que algo estranho estava acontecendo; vozes abafadas, movimentos, ganidos baixos do cachorro que arranhava a porta do meu quarto... Em uma oportunidade ouvi os gêmeos a murmurar a respeito dos lençóis.

- Idiota -, Charlie sussurrou - e vi de relance um pano rasgado, esvoaçante, sujo de lama. - Você pegou os lençóis errados. Não podemos devolvê-los neste estado.

- Vamos trocar pelos outros.

- Mas eles notarão. A roupa de cama fornecida pela lavanderia tem uma marca. Seremos forçados a dizer que os perdemos.

Embora este diálogo não tenha ficado em minha cabeça por muito tempo, ele me intrigou, mais ainda pela resposta insatisfatória dos gêmeos quando toquei no assunto no dia seguinte. Outra esquisitice foi a descoberta, certa tarde, de um imenso tacho de cobre borbulhando na boca traseira do fogão, do qual emanava um odor peculiar. Ergui a tampa e uma nuvem de vapor pungente, acre, atingiu meu rosto. O tacho estava cheio de folhas moles, amendoadas, cozinhando em cerca de dois litros de água escura. O que é isso?, pensei perplexa e curiosa. Quando perguntei a Robin, ela respondeu secamente:

- Para o meu banho.

É fácil entender tudo, em retrospecto. Mas ignorava tudo na época, exceto minha própria felicidade, e não sei o que dizer, pois a vida parecia encantada naqueles dias: uma teia de símbolos, premonições, agouros. Tudo, de algum modo, se encaixava; a Providência, tímida e benevolente, revelava-se aos poucos, e eu me sentia na imanência de uma grande descoberta, como se em determinada manhã tudo fosse fazer sentido - meu futuro, meu passado, minha vida inteira - e me permitisse sentar na cama como se me caísse um raio e dizer: oh! oh! oh!

Passamos tantos dias felizes na casa de campo naquele outono que hoje eles se condensam num grande momento de prazer indistinto. Por volta do Dia de Todos os Santos as últimas flores silvestres teimosas secaram e o vento ganhou ímpeto gelado, despejando uma chuva de folhas amarelas na superfície enrugada do lago acinzentado. Naquelas tardes frias, quando o céu parecia de chumbo e as nuvens apostavam corrida, refugiávamo-nos na biblioteca, enchendo a lareira de lenha para aquecer o ambiente. Ramos pelados de salgueiro batiam na janela como dedos de uma caveira. Enquanto os gêmeos jogavam baralho numa ponta da mesa, Lauren e eu estavamos sentados juntas na outra ponta, onde a mesma acariciava sem malícia a minha coxa, mas consequentemente me deixando toda arrepiada. Robin acomodava-se na poltrona da janela com um prato de sanduíches no colo, lendo em francês, as Mémoires do duque de Saint Simon, que por alguma razão decidira encarar até o fim. Frequentara várias escolas na Europa, falava um francês excelente, embora sua pronúncia mantivesse o mesmo sotaque esnobe e blasé de seu inglês; às vezes, pedia que me ajudasse nas lições do primeiro ano do curso de francês, histórias tediosas sobre Marie e Jean-Claude indo ao tabac, que lia com voz arrastada, divertida ("Marie a apporté des légumes à son frère"), provocando gargalhadas em todos. Dakota deitava-se de bruços sobre o tapete da lareira, fazendo sua tarefa; de quando em quando roubava um sanduíche da Robin ou tentava esclarecer uma dúvida, insegura. Embora sempre se atrapalhasse com o idioma grego, ela começara a estudá-lo muito antes de qualquer um de nós, desde os doze anos, um detalhe do qual se gabava continuamente. Ela sugeria, de modo dissimulado, que se tratava de um capricho infantil, uma manifestação de gênio, à la Alexander Pope; mas a verdade (soube por Lauren) era que ela sofria de dislexia profunda, e na escola dela seguiam a teoria de que era bom forçar o aprendizado de idiomas como grego, hebraico e russo, que não utilizavam o alfabeto romano, pelos estudantes disléxicos. De qualquer maneira, seu talento como linguista era consideravelmente menor do que ela levava os outros a crer, sendo incapaz de decifrar mesmo os textos mais simples sem uma enxurrada de queixas, perguntas e ingestão contínua de alimentos. No final do período ela sofreu uma crise de asma e perambulava pela casa se pijama e roupão, o cabelo desgrenhado, aspirando teatralmente o inalador. As pílulas que tomava (fui informada sem ela saber) a tornavam irritadiça, impediam que dormisse, favoreciam o aumento do peso. E aceitei esta explicação para o mau humor de Dakota no final do período, que, descobri depois, se devia a razões inteiramente diversas.

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