A última semana de aula transcorreu numa correria de malas, trabalhos datilografados, reservas de passagens aéreas e telefonemas para casa, para todos menos para mim. Eu não precisava entregar trabalhos antecipadamente, pois não tinha para onde ir; poderia fazer as malas com calma, depois que os dormitórios se esvaziassem. Dakota foi a primeira a partir. Passara três semanas em pânico por causa do trabalho que precisava entregar para uma matéria optativa chamada mestres da literatura inglesa, creio. A tarefa era escrever vinte e cinco páginas sobre John Donne. Nenhum de nós imaginava como ela o faria, pois seu forte não era redigir; embora a dislexia fosse uma desculpa conveniente, o problema real não se encontrava aí, mas em sua incapacidade de se encontrar. Nisso, era como uma criança. Ela raramente lia os textos exigidos ou consultava a bibliografia recomendada em um determinado curso. Seu conhecimento das matérias não passava de um amontoado de fatos confusos, com frequência irrelevantes ao extremo, ou fora de contexto, dos quais se lembrava em função de discussões em classe ou acreditava ter lido em algum lugar. Quando chegava a hora de redigir um trabalho, ela submetia tais fragmentos duvidosos ao escrutínio minucioso de Lauren (a quem tinha o hábito de consultar, como se Lauren fosse um atlas), ou os recheava com as informações encontradas em The world book encyclopedia ou numa obra de referências intitulada Woman of thought and deed, coleção em seis volumes da década de 1890, que consistia em resumos da vida das grandes mulheres através dos tempos, para crianças, cheia de ilustrações dramáticas.
Qualquer texto de Dakota se caracterizava pela originalidade extrema, pois começava por consultar as obras citadas e acabava por desfigurar tudo com sua confusão mental. Mas a pesquisa de John Donne deve ter sido o pior trabalho composto por ela (ironicamente, foi seu único texto a ser publicado. Depois de seu desaparecimento, um jornalista pediu um exemplo da obra da jovem pesquisadora sumida e Brian deu-lhe uma cópia de um parágrafo caprichosamente reescrito, que acabou chegando até a revista People).
Em algum lugar Dakota lera que John Donne conhecera Izaak Walton, e nos corredores escuros de sua mente a amizade cresceu imensamente, até que os dois sujeitos se tornaram, na imaginação fértil de Dakota, totalmente intercambiáveis. Jamais compreendemos como ela estabeleceu está conexão fatal. Lauren pôs a culpa em Woman of thought and deed, mas ninguém podia afirmar isso com certeza. Uma semana ou duas antes da entrega do trabalho, Dakota começou a me visitar no quarto, lá pelas duas ou três da madrugada, parecendo ter escapado por pouco de catástrofe natural, o cabelo desarrumado, os olhos arregalados. Nessas inesperadas visitas, Lauren nunca estava comigo, o que era bom, pois se Dakota visse ela no meu quarto aquelas horas, teríamos que tentar explicar uma coisa que nem nós duas na época não sabíamos o que era.
- Olá, olá -, Dakota dizia ao entrar no meu quarto, passando as duas mãos pelos cabelos desgrenhados. - Espero que não tenha acordado você, não se importa se eu acender a luz, se importa? Vamos lá. É isso aí...
E depois de acender a luz ela andava de um lado para o outro sem tirar o casaco, as mãos cruzadas nas costas, balançando a cabeça. Finalmente, parava e dizia, com expressão desesperada:
- Metahemeralismo. Fale algo sobre o tema. Conte tudo o que souber. Preciso saber alguma coisa sobre metahemeralismo.
- Lamento. Não tenho a menor idéia do que se trata.
- Nem eu -, ela admitia arrasada. - Tem haver com arte ou estilo pastoral. Preciso seguir por aí, para relacionar John Donne e Izaak Walton, percebe? - E retomava as andanças. - Donne. Walton. Metahemeralismo. É assim que eu vejo a coisa.
- Dakota, não acredito que a palavra Metahemeralismo exista.
- Claro que existe. Vem do latim. Tem haver com ironia e pastoral. Claro. É isso. Pintura ou escultura, sei lá.
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A História Secreta - Camren
Fanfic...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...