Capítulo 18

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Suponho que exista um momento crucial específico na vida de uma pessoa, quando o caráter se defini para sempre; no meu caso, foi o primeiro outono passado em Hampden. Tantas coisas me acompanham desde aquele período até agora: gostos em matéria de roupas, livros e até mesmo comida - adquiridos na época, e em larga medida, admito, na emulação adolescente do restante da turma de grego. Apesar dos anos que transcorreram, tudo isso continuou vivo dentro de mim. É fácil, mesmo hoje em dia, recordar as rotinas diárias que subsequentemente adotei. Eles viviam com método fossem quais fossem as circunstâncias, surpreendentemente distantes do caos que sempre me pareceu inerente à vida universitária - dieta e rotina de estudos irregulares, visitas à lavanderia à uma da manhã. Havia determinados momentos do dia ou da noite, mesmo quando o mundo parecia desabar, em que sempre podia encontrar Lauren na sala de estudos da biblioteca, aberta dia e noite. Ou em que se sabia ser inútil procurar por Dakota, pois ela não abria mão dos encontros com Brian, às quartas, nem de seu passeio a pé domingueiro. (Ao modo do Império Romano, concluo, que prosseguiu de certa forma sua trajetória quando não havia mais ninguém para conduzi-la e quando a razão para sua existência já desaparecera completamente, grande parte da rotina permaneceu intacta, mesmo nos dias terríveis que se seguiram à morte da Dakota. Até o final, sem falta, realizaram-se os jantares de domingo na casa de Charlie e Christian, exceto na noite do assassinato, quando ninguém sentiu vontade de comer e preferiu-se transferir o jantar para segunda.)
                   
Surpreendeu-me a facilidade com que me incorporaram a sua existência cíclica, bizantina. De tão acostumados uns com os outros, creio que me viram como uma renovação, e se intrigada com meus hábitos, até os mais mundanos: a atração pelas histórias de mistério e o vício crônico de ir ao cinema; o fato de que eu cortava meu próprio cabelo e que fazia minhas refeições na faculdade (sem os restaurantes caros.); e também o fato de que lia jornais e acompanhava o noticiário da televisão de quando em quando (um hábito que parecia uma ultrajante excentricidade, uma característica exclusivamente minha; nenhum deles se interessava pelo que acontecia no mundo, e sua ignorância das ocorrências recentes e até da história recente era impressionante. Certa vez, durante o jantar, Lauren ficou abismada ao saber, por mim, que o homem pisara na Lua.

: - Impossível -, ela disse, baixando o garfo.

: - Mas é verdade -, rebateram em uníssono os outros, que de algum modo ouviram a notícia.

: - Não acredito.

: - Eu vi -, Dakota disse. - Pela televisão.

: - Como chegaram lá? Quando foi isso?)

Ainda eram impressionantes como grupo, e foi em bases individuais que cheguei a conhecê-los se verdade. Robin, uma hipocondríaca terrível que se recusava a ir ao médico sozinha, frequentemente me arrastava com ela e, estranhamente, foi no caminho dessas consultas ao especialista em alergias de Manchester ou ao doutor em ouvidos, nariz e garganta de Keene que nos tornamos amigas. Naquele outono ela precisou tratar um canal, durante quatro ou cinco semanas; todas as quarta-feiras ela entrava em meu quarto, pálida e silenciosa, e íamos juntas a um bar na cidade, onde bebíamos até a hora da consulta, três da tarde. A desculpa oficial para minha presença era levá-la de volta para casa quando terminava, tonta de anestesia, mas como eu a esperava no bar, enquanto ela atravessava a rua e sumia no consultório, em geral não me encontrava em estado mais adequado que ela para dirigir.
                     
E tinha os gêmeos. Eles me tratavam de modo alegre, espontâneo, como se eu os conhecesse há mais tempo do que os conhecia de verdade. Christian era meigo, e embora eu suspeitasse de sua atração por mim, preferia não dar brecha, tampouco iludir o mesmo. Eu me sentia mais à vontade com Charlie. Ela se parecia muito com o irmão, sendo impulsiva e generosa, apesar de rabugenta; embora atravessasse fases melancólicas, quando não estava deprimida era em geral comunicativa. Em qualquer uma das situações, eu me entendia bem com ela. Pedimos o carro de Lauren emprestado para ir a um bar de seu agrado no Maine, onde queria comer um club sandwich. Fomos a Bennington, em Manchester; às corridas de galgos em Pownal, onde ela acabou recolhendo e levando para casa um cachorro velho demais para as pistas, a fim de evitar que o animal fosse sacrificado. O nome do cão era Frost. Amava Christian e o seguia por toda parte: Lauren citava longos trechos de Madame Bovary e seu galgo: "Sa pensée, sans but d'abord, vagabondait au hasard, comme sa levrette, qui faisait des cercles dans la campagne...". Mas o cão estava fraco, e muito agitado. Sofreu u. ataque cardíaco no campo, numa clara manhã de dezembro, pulando alegre da varanda para perseguir um esquilo. Isso não foi de modo algum inesperado; o encarregado da pista avisara Charlie de que o cachorro não duraria uma semana; mesmo assim, os gêmeos ficaram desgostosos, e passamos uma tarde de sábado deprimente, enterrando o bicho no quintal da casa de Robin, onde uma das tias de Robin havia feito um requintado cemitério de gatos, com direito a lápides e tudo mais.
                       
O cão afeiçoou-se a Dakota também. Costumava acompanhar Dakota e a mim em longos passeios estafantes pelo mato, todos os domingos, cruzando cercas e regatos, pulando troncos, varanda e pastos. Dakota, por sua vez, parecia uma velha tola, de tanto que apreciava caminhadas. Suas saídas eram tão extenuantes que encontrava dificuldade em achar alguém que a acompanhasse, com exceção de mim e do cachorro - e foi graças a essas caminhadas que me familiarizei  com a região de Hampden, seus caminhos de lenhadores e trilhas de caça, cachoeiras escondidas e secretos remansos para nadar.
                       
O namorado de Dakota, Brian, raramente estava por perto; parcialmente, creio, porque ela não o queria conosco. E também, creio, por se interessar por nós menos ainda do que nos interessavámos por ele. ("Ele prefere ficar ficar com os amigos -, Dakota gabava-se a Charlie e a mim. -, Conversam sobre esportes e garotas e outras bobagens. Vocês sabem como é.") Tratava-se de um rapaz de Connecticut, loiro, olhos azuis, não tão alto, petulante, com o queixo quadrado e bonito à mesma maneira que a de Dakota. Seu modo de vestir combinava o estilo adolescente com o matronal explícito - calças engomadas, blusas monogramadas combinando com os sapatos. De tempos em tempos eu o via, ao longe, no pátio de recreio da creche do Centro de Estudos Infantis, quando seguia para a aula. Pertencia ao Departamento de Educação Infantil de Hampden; as crianças locais frequentavam ali as classes maternal e pré, e eu o via com elas, de blusa monogramada, apitando, tentando obrigá-las a calar a boca e formar fila.
                       
Ninguém comentava o assunto, mas descobri que as tentativas iniciais anteriores de incluir Brian nas atividades do grupo terminaram em desastre. Ele gostava de Christian, que se mostrava normalmente educado com todos, além de ter uma capacidade insuperável de conduzir conversas com qualquer um, das crianças pequenas às senhoras que trabalhavam na lanchonete; e ele tratava Lauren, como a maioria das pessoas que a conheciam, com um certo respeito temeroso; mas odiava Charlie, e entre ele e Robin ocorrera algum incidente catastrófico, tão terrível que ninguém sequer o mencionava. Ele é Dakota mantinham um relacionamento do tipo que raramente testemunhei, a não ser entre casais que conviviam por vinte anos ou mais, um relacionamento que vacila entre o tocante e o irritante. Ao lidar com ela, Brian se mostrava autoritário e distante, tratando-a do mesmo modo como tratava seus alunos do maternal. Ela, por sua vez, reagia com adulação, carinho ou cara feia. Em geral, aturava seus sermões com paciência, mas quando o enfrentava seguiam-se brigas terríveis. Por vezes ela batia em minha porta, tarde da noite, desolada, de olhos vermelhos, e mais relaxada do que o normal, resmungando:

: - Me deixe entrar, Mila, você precisa me ajudar, Brian está atacado...

Minutos depois ouvíamos uma série de batidas ritmadas na porta. Era Brian, testa franzida e olhar preocupado.

: - Dakota está aqui? -, perguntava, erguendo-se na ponta dos pés, esticando o pescoço para espiar dentro do quarto, por cima do meu ombro.

: - Não, ela não está aqui.

: - Tem certeza?

: - Ela não está aqui, Brian.

: - Dakota! -, gritava sinistro.

Nenhuma resposta.

: - Dakota!

Então, para meu profundo constrangimento, Dakota aparecia envergonhada, parando à porta.

: - Oi, amor.

: - Onde se meteu?

Dakota desconversava.

: - Sabe, precisamos conversar. -, ele afirmava.

: - Estou ocupada agora, amor.

: - Bem... -, ele consultada o relógio elegante de pulso -, estou indo para casa agora. Daqui a meia hora vou dormir.

: - Tudo bem.

: - Portanto, quero vê-la dentro de vinte minutos, no máximo.

: - Ei, espere um pouco. Eu não disse que iria...

: - Até daqui a pouco -, ele dizia, antes de dar meia-volta e sair.

: - Eu não vou -, Dakota dizia.

: - Isso mesmo. -, eu a encorajava.

: - Ele está pensando que é o quê?

: - Não vá.

: - Sabe, preciso dar-lhe uma lição. Sou uma garota ocupada. Mil coisas. Dona do meu nariz.

: - Exatamente.

Seguia-se um silêncio constrangedor. Dakota levantava-se, finalmente.

: - Acho melhor ir embora.

: - Tudo bem, Dakota.

: - Entenda bem, não vou falar com Brian, se é o que está pensando. -, ela dizia, na defensiva.

: - Claro que não.

: - Certo, certo -, Dakota retrucava distraída, ao partir.

No dia seguinte ela e Brian almoçavam juntos ou passeavam pelo pátio de recreio de mãos dadas.

: - Então você e Brian resolveram tudo, não? -, um de nós perguntaria ao vê-la sozinha mais tarde.

: - Isso mesmo -, respondia Dakota, embaraçada.

Eu gostava especialmente de Lauren. Como sabia que eu dormia tarde também, ela por vezes parava para me ver, ao sair da biblioteca a caminho de sua casa. Por mais que apreciasse sua companhia, contudo, sentia certo constrangimento em sua presença; não por falta de charme ou demasiadas gentilezas da parte dela, e sim por meu desejo intenso de impressioná-la. Eu ansiava por vê-la e pensava nela com frequência e creio que em certos momentos eu tenha deixado isso transparecer, pois ela, embora não fosse de sorrir muito, me lançava sorrisos vespertinos quando ninguém estava olhando me deixando assim, com as bochechas vermelhas ao constar que ela sabia da minha queda por ela. Deus, e que queda!

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora