Em retrospecto, considero estranho o pouco poder que o fazendeiro morto exercia sobre uma imaginação mórbida e histérica como a minha. Posso imaginar muito bem a extravagância dos pesadelos provocados por um fato assim (ao abrir a porta da sala de aula, uma figura vestindo camisa de flanela, sem rosto, surgiu encostada na mesa, ou deixando de lado o texto que escrevia no quadro-negro para dar meia-volta e me encarar sorrindo), mas suponho que seja revelador o fato de eu nunca pensar no assunto com seriedade, que só me vem à mente quando algo aviva a memória. Creio que os outros sofreram poucas perturbações com isso, assim como eu, pois tocaram a vida normalmente, de bom humor, por muito tempo. Mesmo monstruoso, o cadáver em questão mal passava de um boneco, um manequim carregado pelos contra-regras e atirado aos pés da Lauren no palco para ser descoberto apenas quando as luzes se acendenssem; sua figura, de olhos arregalados e coberta de sangue, jamais deixou de provocar um certo frisson ansioso, é mesmo assim era relativamente inofensiva, se comparada com a ameaça real e permanente que Dakota no momento representava.
Dakota, apesar de transmitir uma impressão de estabilidade amigável, sólida, possuía na verdade uma personalidade errática, instável. Numerosas razões explicavam isso, mas em primeiro lugar vinha sua completa incapacidade de pensar antes de agir. Ela navegava pelo mundo guiada apenas pelas luzes deficientes do impulso e do habito, confiando que seu rumo não encontraria pela frente obstáculos insuperáveis pela pura força do impulso. Mas seus instintos fracassaram na avaliação do conjunto inédito de circunstâncias introduzido pelo crime. No momento em que as antigas bóias de sinalização foram, por assim dizer, reposicionadas no escuro, o mecanismo de piloto automático que orientava sua psique tornou-se inútil; as ondas fustigavam o convés, e ele derivava sem rumo, encalhando em bancos de areia, mudando de direção ao acaso, de modo bizarro.
Para o observador distraído, suponho, ela continuava a ser a mesma garota alegre, agitada, comendo Twinkies e HoHos na sala de leitura da biblioteca e deixando cair as migalhas no meio dos livros de grego. Mas por trás dessa fachada ilusória, mero blefe, ocorriam mudanças notáveis, pavorosas até, transformações que eu já conseguia perceber ligeiramente e que se manifestavam com mais clareza a cada dia.
Em certos aspectos, era como se não tivesse acontecido nada. Comparecíamos às aulas, fazíamos as lições de grego e transmitíamos, a nós mesmos e aos outros, a impressão geral de que estava tudo bem. Na época alegrei-me por ver Dakota, apesar da perturbação mental óbvia, seguindo a velha rotina com facilidade. Hoje, claro, vejo que a rotina era a única coisa que a mantinha estável. Seu único ponto de referência, ao qual se agarrava com tenacidade feroz, pavloviana, em parte por hábito e em parte por não ter por que substituí-la. Suponho que os outros já haviam notado que o prosseguimento dos antigos rituais era, em certos aspectos, um teatro em benefício da Dakota, uma representação para acalma-lá. No meu caso, não. Só percebi o quanto estava perturbada quando ocorreu o seguinte.
Passávamos o fim de semana na casa de campo da Robin. Fora a quase imperceptível tensão que se manifestava em todos os contatos com a Dakota na época, tudo parecia transcorrer com calma, ela demonstrara bom humor no jantar daquela noite. Quando subi para me deitar ela permaneceu embaixo, bebendo o vinho que sobrara do jantar, e jogando gamão com Charlie, aparentemente o mesmo de sempre. Mas no meio da noite fui acordada por uma gritaria incoerente, no fundo do corredor perto do quarto da Lauren.
Sentei-me na cama, acendi a luz e percebi que Lauren ainda não vindo se deitar comigo.
- Você não dá a menor importância a nada -, ouvi Dakota gritar; seguiu-se um estrondo, como se provocado por livros jogados no chão. - Nada além de você mesma, porra, você e os outros... eu queria ver o que a Vanessa ia pensar disso, sua filha da mãe, se eu contasse a ela um pouco... não toque em mim -, ela gritou. - Fora daqui!
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A História Secreta - Camren
Fanfic...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...