Capítulo 67

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A chuva caía, tilintando na minha janela enquanto eu, deitada de costas, não conseguia pregar o olho, escutando.

Choveu durante a noite inteira e na manhã seguinte, uma chuva morna, cinza e contínua como um sonho.

Quando acordei eu já sabia o que encontraria naquele dia, sabia pelo aperto no estômago desde o instante em que espiei pela janela, para o gramado, vendo trechos de grama viscosa, meio podre, e por toda a parte ping, ping, ping.

Foi um daqueles dias misteriosos, opressivos, que por vezes temos em Hampden, quando as montanhas que se erguem no horizonte somem na névoa e o mundo parece vazio e leve, perigoso até. Caminhando pelo campus, a grama molhada manchando os pés, a gente se sentia no Olimpo, Valhala, ou numa terra desolada qualquer acima das nuvens;

Chuvisco e lama. Commons cheirava a roupa molhada, tudo escuro e subjugado. Encontrei Lauren e Christian no andar de cima, sentados numa mesa perto da janela, o cinzeiro cheio entre eles, Lauren apoiando o queixo nas mãos e um cigarro queimando entre os dedos enodoados.

O salão de refeições principal situava-se no segundo andar, num anexo moderno que se projetava para os fundos, sobre a área de carga. Vidros imensos, fustigados pela chuva, nos cercavam por três lados, e tínhamos a vista privilegiada da área de carga, onde os caminhões com manteiga e ovos descarregavam no início da manhã, e da estradinha escorregadia é escura que serpenteava por entre as árvores e desaparecia na névoa em direção a North Hampden.

Serviram sopa de tomate no almoço, e café com leite desnatado, pois o comum acabara. A chuva tamborilava no vidro das janelas. Lauren estava distraída. O FBI a visitara novamente na noite anterior - não contou o que queriam - e ela falava sem parar, em voz baixa, sobre a Íliom de Schliemann. Quando morei com ela, no inverno, por vezes dedicava horas a estes monólogos didáticos, despejando uma carga pedante e espantosamente precisa de informações com a calma lenta e ausente de um hipnotizado.

Não sabia onde Robin e Charlie estavam, mas imaginara que estivessem juntas.

Era tarde. As pessoas saíam, depois de ter almoçado. Um velho faxineiro passou esfregando o chão, com um balde, começando pelo balcão de bebidas.

Christian olhava pela janela. Seus olhos se arregalaram de repente. Devagar, incrédulo, ele ergueu a cabeça; e depois pulou da cadeira, esticando o pescoço para ver melhor.

Eu também vi e corri para a janela. Uma ambulância estacionou logo abaixo de nós. Dois enfermeiros, perseguidos por um bando de fotógrafos, passaram correndo, com as cabeças abaixadas por causa da chuva, carregando a maca. A forma que transportavam havia sido coberta por uma manta, mas no momento de passar pela porta dupla (num movimento lento, longo, como se enfiassem um pão no forno), antes que fechassem, eu vi na beirada uns dez centímetros de capa de chuva amarela.

Gritos ao longe, no térreo de Commons; portas batendo, uma confusão crescente, vozes cobrindo vozes, e depois uma voz áspera, erguendo-se acima das outras: "Ela está viva?".

Lauren respiro fundo. Depois fechou os olhos; exalando o ar com força, ela levou a mão ao peito e largou o cortina cadeira, como se tivesse levado um tiro.

O que aconteceu foi o seguinte.

Por volta da uma e meia da tarde, na terça-feira, Normani Kordei, caloura de dezoito anos, de Nova Orleans, resolveu levar seu cachorro para dar uma volta.

Normani, que estudava dança moderna, embora soubesse da busca por Dakota, como a maioria dos estudantes do primeiro ano não participou dela, aproveitando o recesso para rever matérias e recuperar o sono perdido. Compreensivelmente, preferiu evitar as rotas dos grupos de busca ao sair para seu passeio. Portanto, conduziu seu cachorro por trás das quadras de tênis até o desfiladeiro, já percorrido havia três dias pelos grupos. Além disso, o cachorro gostava de correr por lá.

E Normani contou:

- Quando perdemos o campus de vista, soltei a coleira do meu cachorro para que ele pudesse correr à vontade. Ele adora isso... Bem, eu estava lá [na beira do desfiladeiro], esperando por ele. Meu cachorro rolou pela encosta, e corria de um lado para o outro, latindo, como de costume. Eu havia esquecido a bola de tênis. Pensei que estivesse em meu bolso, mas enganei-me. Saí procurando uns pedaços de pau, queria atirá-los para ele ir buscar. Quando me aproximei da beirada do precipício, vi que ele tinha alguma coisa na boca e balançava a cabeça de um lado para o outro. Chamei, mas ele não veio. Pensei que tivesse caçado um coelho ou algo assim... Creio que meu cachorro cavou, até a altura da cabeça e do peito dela - não dava para ver direito. Notei os óculos, primeiro... ele mordeu uma orelha e ficou puxando, feito... sim, por favor... lambendo o rosto...

Nós três descemos correndo (faxineiro de boca aberta, cozinheiros espiando da cozinha, as serventes da lanchonete com seus cardigãs debruçadas na balaustrada), passando pelo bar, pelo correio, onde pelo menos daquela vez a senhora de peruca vermelha na mesa telefônica deixara de lado seu tricô e o saco com lãs variadas e seguira até a porta, um lenço de papel amassado na mão, acompanhando com olhos curiosos nossa passagem, enquanto chegávamos ao salão principal de Commons, onde um grupo de policiais mal encarados, o delegado, alguns guardas florestais e de segurança cercavam uma moça que chorava. Alguém tirava fotos, todos falavam ao mesmo tempo, até que alguém olhou para nós e gritou: "Ei! Você! Conhecia a garota?".

Os flashes espoucaram de vários pontos, e microfones e câmeras aos montes nos cercaram.

- "Vocês a conheciam fazia muito tempo?"

- "...incidente relacionado com drogas?"

- "...viajaram juntas para a Europa, certo?"

Lauren passou a mão pelo rosto; jamais me esquecerei de sua fisionomia. Branca como talco, gotículas de suor no lábio superior, a luz refletida em seus óculos... "Me deixem em paz", ela murmurou, me pegando pelo pulso e tentando abrir caminho até a porta.

A ambulância foi embora. A estrada se estendia, lisa e vazia, na garoa. O agente Davenport subiu apressado os degraus de acesso a Commons, os sapatos pretos ecoando no mármore molhado. Quando nos viu, parou. Sciola, atrás dele, galgou com esforço os últimos dois ou três degraus, segurando um joelho com a mão espalmada. Parou atrás de Davenport e nos encarou por um momento, respirando com dificuldade.

- Lamento muito -, disse.

Um avião passou, invisível, acima das nuvens.

- Ela está morta, então? -, Lauren perguntou.

- Temo que sim.

O barulho do avião sumiu no vazio úmido, no vento.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora