Há muitos anos, num caderno velho, escrevi: "Uma das qualidades mais atraentes da Vanessa é sua incapacidade de ver as pessoas como elas realmente são". Embaixo, em tinta diferente, acrescentei: "E talvez uma de minhas qualidades, também (?)".
Para mim sempre foi difícil falar da Vanessa sem romancear. De muitas maneiras, eu a amava; em sua presença, sentia o impulso de enfeitar, melhorar, de basicamente reinventar tudo. Creio que isso ocorria porque Vanessa também dedicava-se constantemente ao processo de reinventar as pessoas e os fatos que a circundavam, atribuindo gentileza, sabedoria, charme ou bravura a ações que não continham nada disso. Era um dos motivos pelos quais eu a amava: a luz lisonjeira sob a qual me via e que me tornava a pessoa que eu queria ser em sua presença, pois ela me permitia este prazer.
Hoje, claro, seria fácil passar para o extremo oposto. Poderia dizer que o segredo do encanto da Vanessa estava em se aproximar de jovens ansiosos para achar que eram melhores do que os outros; que possuía o estranho dom de transformar sentimentos de inferioridade em superioridade e arrogância. Poderia dizer também que não agia por motivos altruístas, e sim por egoísmo, de modo a satisfazer seus próprios impulsos egoístas. Poderia prosseguir nesta linha, creio, com razoável grau de precisão. Mas, ainda assim, isso não explicaria a magia fundamental de sua personalidade, nem o motivo - mesmo à luz dos eventos subsequentes - que me leva a desejar ardentemente vê-la como a vi pela primeira vez: uma mulher sábia que apareceu do nada, numa estrada desolada, com a tentadora oferta de tornar meus sonhos realidade.
Nem nos contos de fadas tais gentis senhoras e suas ofertas fascinantes são o que aparentam. Esta não deveria ser uma constatação difícil de aceitar a esta altura, mas era, por algum motivo. Mais do que nunca eu gostaria de poder afirmar que o rosto da Vanessa se esfaleceu quando soube o que havíamos feito. Gostaria de poder contar que ela pôs a cabeça na mesa e chorou, chorou por Dakota, chorou por nós, chorou pelos desvios e vidas perdidos; que chorou por si mesma, por ter sido tão cega, por se recusar repetidamente a ver.
O caso é que sinto a forte tentação de dizer que ela fez tudo isso, embora não seja verdade.
George Orwell - um observador atento do que existe por trás da aparência das belas fachadas, sociais ou não - encontrara-se com Vanessa em diversas ocasiões, e não gostara dela. Aos amigos, escreveu: "Ao conhecer Vanessa Ives, a gente tem a impressão de que se trata de uma mulher de simpatia e calor extraordinários. Mas o que chamam de 'serenidade oriental' dela não passa, creio, de uma máscara para sua extrema frieza. O que mostramos a ela invariavelmente se reflete de volta, criando a ilusão de profundidade e calor, quando na verdade ela é superficial e dura como um espelho. Acton", tratava-se, provavelmente, de Harold Acton, que se encontrava em Paris na época, sendo amigo tanto de Orwell quanto da Vanessa, "discorda de mim. Mas creio que não se pode confiar nela".
Refleti um bocado sobre esta passagem e também sobre um comentário ferino feito, imaginem, logo por Dakota, entre tantas pessoas: "Sabe, Vanessa é uma daquelas pessoas que pegam os seus bombons favoritos numa caixa e deixam o resto". No início, parece meio enigmático, mas no fundo não consigo pensar em metáfora mais adequada para definir a personalidade da Vanessa. Ganha de outro comentário, de Adele Haenel, na ocasião em que coloquei Vanessa nas nuvens. "Vanessa" ela retrucou secamente, "jamais será uma estudiosa de primeira linha, pois só é capaz de ver as. coisas numa perspectiva seletiva."
Quando discordei - com veemência - e perguntei qual o problema em concentrar a atenção em apenas dois elementos, quando estes eram a Arte e a Beleza, Haenel replicou: "Não há nada de errado no amor pela Beleza. Mas a Beleza - a não ser que esteja vinculada a algo mais significativo - é sempre superficial. Vanessa não somente se concentra em determinados aspectos importantes; ela também prefere ignorar outros igualmente importantes".
Interessante. Ao recontar estes casos, lutei contra a tendência de idolatrar Vanessa, de fazer dela uma santa - basicamente, de falsificá-la -, de modo a tornar nossa veneração mais compreensível; tentei ir além, em resumo, de minha tendência fatal de tornar boas as pessoas interessantes. E sei que disse antes que ela era perfeita, embora não o fosse, longe disse; sei que ela era tola e fútil, distante e até cruel, é mesmo assim a amamos, nós a amamos apesar e por causa disso.
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A História Secreta - Camren
Fanfiction...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...