Capítulo 54, porra

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Passava das três da manhã quando ela terminou de falar. A história que contou era confusa, coisa de gente bêbeda, fora de sequência e cheia de digressões maldosas, moralistas; mas não tive dificuldade em compreender tudo. Já a escutara antes. Ficamos ali sentadas, quietas por algum tempo. A lâmpada sobre a mesa me ofuscava a vista. A festa lá fora corria solta, e um rap baixo, porém insistente, rolava ao longe.

Dakota respirava sofregamente, asmática. A cabeça pendeu sobre o peito, mas ela acordou com um tranco.

- O que foi? -, ela disse, confusa, como se alguém gritasse em sua orelha, por trás. - Ah, é.

Não falei nada.

- O que acha da história, ein?

Não fui capaz de responder. Esperava, no fundo, que ela tivesse esquecido tudo.

- Coisa horrorosa. Os fatos são mais estranhos que a ficção, minha cara. Não é bem assim. Como é mesmo? -, ela perguntou.

- A realidade supera a ficção. -, falei automaticamente. Felizmente, pensei, eu não precisava me esforçar para parecer abalada ou surpresa. Quase vomitei, de tão incomodada.

- A gente aprende com isso -, ela disse com a voz empastada, olhando para um ponto ao longe - que pode ser qualquer um, até seu vizinho. A gente nunca sabe.

Cobri o rosto com as mãos.

- Você pode contar a quem quiser -, Dakota disse. - Conte ao prefeito, porra. Nem ligo. Mande todos eles para aquela mistura de correio e cadeia, no fórum. A Lauren acha que é muito esperta -, resmungou. - Sabe, se não estivéssemos em Vermont, ela não dormiria tão bem à noite, posso apostar. Sabe, meu pai é o melhor amigo do comissário de polícia de Hartford. Se ele descobrir algo a respeito, minha nossa. Papai e ele fizeram colégio juntos. Eu costumava sair com o filho dele, no ensino médio... -, Sua cabeça caiu, mas ela se recuperou. - Meu Deus -, ela disse, quase caindo da poltrona.

Eu a encarei.

- Me passa o meu sapato, por favor.

Entreguei-lhe o pé que faltava e a meia. Ela os olhou por um momento, depois os enfiou no bolso do casaco.

- Cuidado com as pulgas -, ela falou, e foi embora, deixando a porta do quarto aberta atrás de si. Ouvi seu andar vacilante enquanto mancava até o final da escada.

Os objetos do quarto pareciam inchar e diminuir a cada batida do meu coração. Terrivelmente entorpecida, sentei-me na cama, com o cotovelo no parapeito da janela, e tentei pôr as ideias em ordem. O rap diabólico flutuava do prédio em frente, de cujo telhado um par de sujeitos agachados, escondidos nas sombras, atirava latas de cerveja em cima de um bando de hippies desconsolados, reunidos em torno de uma fogueira acesa dentro de uma lata de lixo, tentando fumar um baseado. Uma lata de cerveja voou do telhado, depois outra, que acertou um deles na cabeça com um som fraco. Risos, gritos indignados.

Eu acompanhava as centelhas que saíam da lata de lixo quando um pensamento repentino me apavorou. Por que Dakota viera até meu quarto em vez de procurar Brian ou Ashley? Ao olhar para as janelas, a resposta era tão óbvia que me arrepiou. Pois meu quarto era o mais próximo, apenas. Brian morava na Roxburgh, na outra extremidade do campus, e Ashley no lado mais afastado de Durbinstall. Nenhum dos locais se mostrava com tanta facilidade a uma bêbada cambaleando na noite. Mounmouth, em compensação, encontrava-se a uns dez metros, e seu quarto, facilmente visível graças à janela iluminada, deve ter iluminado seu caminho como um farol.

Suponho que seria interessante declarar a esta altura que eu me sentia dividida, de certa maneira em dúvida quanto às implicações morais de cada uma das opções disponíveis. Mas não me lembro de ter sentido nada do gênero. Calcei os tênis e desci para telefonar a Robin.

A História Secreta - CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora