Ai! Pobre cavalheiro,
Ele não se assemelhava às ruínas de sua juventude,
Mas às ruínas destas ruínas.John Ford, The broken heart
***
Consegui dispensa do exame final de francês, marcado para a semana seguinte, graças à excelente desculpa de ter um ferimento a bala no estômago.
Disseram no hospital que eu tive sorte, suponho que corretamente. O projétil me atravessou, passando a um ou dois milímetros da parede do intestino e a outro tanto do baço, saindo nas costas, a cerca de quatro centímetros à direita de onde entrara. Deitada de costas na ambulância, via a noite de verão passar, quente e misteriosa - garotos de bicicleta, mariposas revoando em torno das lâmpadas - imaginando como seria, se minha vida passaria inteira diante de meus olhos quando eu fosse morrer. Sangrava muito. As sensações começavam a perder nitidez. Só pensava naquela curiosa viagem ao mundo das sombras, pelo túnel iluminado. O paramédico que me acompanhava na parte traseira não era muito mais velho do que eu; um rapaz, apenas, com pele ruim e bigodinho ralo. Nunca vira um ferimento de arma de fogo. Não parava de perguntar como eu me sentia. Amortecida ou com dores agudas? Odor mesmo ou sensação de queimadura? Minha cabeça girava, e naturalmente não podia fornecer respostas coerentes, mas lembro-me de ter pensado que era tudo meio parecido com a vez em que me embriaguei pela primeira vez, ou quando dormi com uma garota.
Lauren morreu. Com dois tiros na cabeça, não poderia ter feito outra coisa. Contudo, ainda sobreviveu por doze horas, um feito que surpreendeu os médicos. (Eu estava sob efeito de sedativos, soube porque me contaram.) Ferimentos tão graves, afirmaram, teriam matado outra pessoa instantaneamente. Creio que isso indicava que a minha Lauren não queria morrer; e, neste caso, por que dera dois tiros na cabeça? Por pior que fosse a situação, no Albemarle, ainda acredito que teríamos dado um jeito. Não fez aquilo por desespero. Nem por medo, penso. Isso não era coisa dela. A decepção com Vanessa fizera um estrago nela, continuava a atormentar sua mente. Creio que sentiu a necessidade de fazer um gesto nobre, algo para provar a nós e a ela mesma que era possível praticar os princípios elevados que Vanessa nos ensinara a usar. Dever, piedade, lealdade, sacrifício. Eu me recordo do seu semblante quando levou a pistola à cabeça. Sua expressão era de intensa concentração, de triunfo, quase como a de uma praticamente de salto olímpico na beira do trampolim. Olhos fixos, animados, aguardando o momento da queda.
Penso muito naquele momento, na expressão em seu rosto. Penso muito em muitas coisas. Penso na primeira vez que a vi, andando pelo campus com o grupo; na última vez que dormimos juntas; na primeira primeira vez que nos beijamos; no seu sorriso ao pronunciar uma frase de Homero;
Creio que fiquei muito tempo em luto naquela verão após a sua morte. Fazia tudo no automático, consegui me formar em Hampden, em literatura inglesa. E fui para o Brooklyn, com a barriga enfaixada, como uma gângster, e passei o resto do verão descansando no deck de cobertura, fumando cirgarros, lendo Proust, sonhando com a morte, indolência, beleza e com a Lauren. O ferimento cicatrizou, deixando uma marca escura na barriga. Voltei para Hampden no outono: um mês de setembro seco, glorioso, difícil de acreditar como as árvores estavam lindas naquele ano. Céu azul, bosques, pessoas murmurando por onde quer que eu passasse. Tudo na cidade estava calmo, exceto meu coração.
Acho que nunca me recuperei realmente da morte da Lern. Jamais amei alguém tanto quanto a amei. O vazio que ela deixou, nunca consegui o preencher. Eu sei, podem dizer, podem lamentar, poxa, que mulher triste ela é, nunca superou a morte da namorada que nem mesmo era sua namorada propriamente dita.
Eu sinto tanta falta dela. Ela era gentil, semelhante a mim. A mulher dos meus sonhos. Lembro sempre daquele dia quando fomos caminhar tarde da noite, a lua estava linda, as árvores se mexiam sob o luar, e o vento parecia dançar ao nosso redor. Penso, naquela noite sempre, em que o verdadeiro amor parecia possível.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A História Secreta - Camren
Fiksi Penggemar...Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente. E Camila sabia bem disso, pois os fantasmas do pa...