| NA TH |
Fico o máximo de tempo possível enfiado no quarto com a Alice. Não que isso seja ruim, longe disso, na verdade. Quanto mais inalo seu cheiro, mais meu corpo implora pelo dela. Sei que existem coisas acima disso que precisam da minha atenção também, como a guerra que se aproxima mais a cada dia, mas eu também deveria ser importante nesse processo. Porra, minhas vontades também merecem algum valor.
A forma como eu enxergava tudo mudou. Não o objetivo. Ele ainda continua tão claro quanto o nascer do sol. O que se transformou foi a passagem. Algo dentro de mim se quebrou. Não do jeito ruim, mas de uma forma boa. Alguma parte dessa armadura que foi forjada há tempo demais, se despedaçou aos pés dela.
Alice.
Fui um tolo em pensar que essa mulher era inofensiva. Fui um completo idiota ao pensar que era eu quem detinha algum poder. Por um breve segundo, até foi. Mas o controle já não está ao meu lado já faz um bom tempo e confesso que abrir mão dessa pressão foi um alívio. Não ser uma máquina construída com um único propósito nas últimas semanas foi um sentimento diferente. Foi assustador e ainda é, mas colocar meu interesse no topo era uma coisa que precisava ser feita, porque não quero ser apenas mais um peão nesse jogo. Não quero apenas obedecer ordens e sacrificar minha existência. Quero viver. Quero sentir tudo o que inundou meu peito desde que essa humana boca dura e linda, modificou as minhas regras.
Esse pensamento deixa um gosto estranho na minha boca. É como se estivesse traindo um plano maior de que faço parte e talvez até seja isso. Mas de que outro jeito isso daria certo? Não consigo pensar em uma única alternativa correta. Conheço as leis melhor do que ninguém e então, só decidi ignorá-las por agora. Estou permitindo que o egoísmo faça morada em mim hoje e por mais que seja uma coisa ruim, nesse momento, enrolado com ela e ouvindo o som baixo da sua respiração tranquila, parece a porcaria de uma benção. Mesmo eu sabendo que não seja.
Afasto meu braço devagar e apoio a cabeça dela no travesseiro. Caminho até a parede oposta e arrasto as cortinas para que escureça, mesmo que um pouco, a claridade absurda que vem de fora. Com um gemido, Alice se move lentamente, mudando a posição na cama, mas ainda adormecida. Ando nas pontas dos pés até o armário e puxo a primeira bermuda que vejo, saindo em silêncio.
— Qual o seu problema? — Sussurro ao ver Rafael escorado na parede do quarto.
— A gente precisa conversar. — Aquele sua postura descontraída de sempre é o oposto dos seus olhos que mal me encaram. Assinto e o sigo, com seus passos firmes batendo forte no chão.
— Diga. — Abro a geladeira e vou até o balcão, batendo a ponta da garrafa no mármore. O barulho fino da tampa rolando pelo piso é o único som agora — O que foi? — Pergunto e levo a bebida até a boca. O liquido gelado que desce pela minha garganta diminui - um pouco - o fogo que parecia percorrer meu corpo desde que Alice chegou.
— Você sabe o que é. — Retruca mal humorado — Tem noção da merda que está fazendo, cara? — Questiona decepcionado e essa sua reprovação me incomoda bastante. Ninguém nunca me conheceu tão bem quanto ele, mas hoje, excepcionalmente hoje, nem eu mesmo que reconheço. Então, só deixo passar para evitar uma tempestade desnecessária.
— O que esperava que eu fizesse? — Sento no banco mais próximo e tomo outro gole — Eu ficaria louco sem ela. — Assumo pela primeira vez o que sinto para Rafael e o semblante dele parece um reflexo do meu. Choque total. Cru e intenso ao mesmo tempo — Estou cansado de fingir que está tudo bem.
— Então é amor mesmo. — Ele ergue os lábios em um sorriso de verdade e aquela expressão séria se suaviza, e meu peito parece até ficar mais leve — Vai dar muito problema essa sua escolha.
— Eu sei. — Afirmo e sorrio também — Mas eu sempre estou no meio de alguma encrenca, não é? — Ele gargalha e eu acabo sorrindo junto, mas sei que não é de tanta felicidade. É mais uma coisa automática minha. Um escudo. Tenho total ciência das confusões e do alvo que coloquei nas costas dela e por mais que nada faça sentido sem a Alice comigo, colocá-la em perigo está tirando uma pouco da minha paz a cada segundo e fico me perguntando se estou agindo direito.
— Agora falando sério. — Maneio a cabeça em entendimento, porque sei o que vem a seguir. O inevitável — Como pretende fazer isso dar certo, Nath? Ela não faz parte do nosso mundo. — Ele trava o maxilar ao terminar de falar e movo meu olhar para cima, que se perde em um ponto qualquer no teto.
— Ela faz parte do meu mundo. — Minha voz rouca e baixa seria impossível de ouvir para um humano, mas não para ele — Não vou tirar as lembranças dela outra vez e não espero a aprovação de ninguém também.
— Entendo.
— Você pode ir embora, se quiser. — Fico em pé novamente e vou em busca de outra cerveja — Não te julgaria por isso.
E eu não faria isso mesmo. Posso imaginar perfeitamente como serão os dias daqui para frente e não posso condená-lo junto comigo. Já basta a minha alma, não quero acumular outras por uma escolha que foi somente minha.
— Não vou a lugar algum. — Diz confiante e inspiro fundo, deixando o ar entrar nos meus pulmões — Já passou da hora dessas regras mudarem, Nath. — Aceno ao concordar com ele e sorrio, mas dessa vez, dessa maldita vez, é um sorriso forte, porque sei que não estou indo para a batalha sozinho. Tenho a minha menina de volta e o apoio do meu parceiro, meu irmão de vida. E nunca, em nenhum momento, me senti tão poderoso como agora para enfrentar qualquer coisa.
Estou pronto para enfrentar o destino que eu mesmo estou traçando.
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Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...