Capítulo 24

450 88 19
                                    

| A L I C E |

Ouço o barulho dos seus passos pesados atrás de mim e a escada geme com o peso dos nossos corpos. Posso sentir sua presença tão próxima, que o calor da sua respiração parece vir diretamente para a minha nuca. 

— Toda essa raiva por causa do beijo? — ele pergunta baixo. Suspiro e continuo andando — Alice. — seus dedos apertam meu braço e paro com o corpo inclinado na escada. Mesmo em pé no degrau acima, ainda estou menor que ele. 

— Toda essa raiva não é por causa do beijo. — sinto um gosto ruim na boca ao dizer isso, sabendo que é verdade em partes, mas mantenho essa sensação longe — A questão é que quero a minha normalidade de volta. Não quero olhos azuis na minha cara, não quero você aparecendo como um maldito ninja no meu quarto ou no trabalho. Droga, Nathaniel. — puxo minha mão para me desvencilhar do seu contato e vejo sua expressão quase magoada doer meu peito, mas isso logo passa quando lembro que a vítima aqui não é ele — Quero ... — solto uma lufada de ar quando as palavras parecem desaparecer da minha mente e volto a subir.

— O que? — questiona confuso e ignoro. Não tenho que ficar me explicando para ele. Posso sentir sua frustração queimando as minhas costas, mas estou ficando boa nesse negócio de não entrar em um briga desnecessária, porque é exatamente o que isso é. Tenho que fazer o que precisa ser feito, somente assim a minha paz vai voltar. Bater de frente não vai acelerar nada, pelo contrário.

Passo a chave pela porta e abro espaço para que ele passe. Recebo seu olhar tão furioso, que a minha única reação é sorrir em resposta, o que o irrita ainda mais. 

— Quantas você tomou? — pergunta ao recolher as garrafas em cima da cama.

— É só contar, não comi nenhuma. — retruco ironicamente e ele balança a cabeça seriamente, mas posso ver um sorriso apontando no seu rosto quando caminha até a lixeira e mesmo que eu lute contra, acabo sorrindo também. Tiro meu sapatos e fico descalço. Caminho até a mesa e puxo uma cadeira.

Nathaniel se senta na minha frente e assume uma postura defensiva. Dobra a perna sobre o joelho e me observa.

— Eu juro que tento te entender, mas é difícil. — ele murmura e dou de ombros. Posso ver que está se esforçando para não ser tão babaca, mas não vou ser arrastada de novo para esse papel passivo. Não vou ser a pessoa que tolera o que ele pretende jogar em mim a cada nova conversa. A cada novo humor que ele resolve assumir.

— Não vamos por esse caminho. — interrompo — Só me diga o que eu preciso fazer para te ajudar.

— O que você quer de mim, Alice? — ele se recosta na cadeira e passa a mão pelo cabelo. Finjo que não entendi o teor do seu questionamento e respondo:

— Que você me explique o que tenho que fazer.

— Preciso ser digno desse seu sacrifício em me ajudar? — ele ri com escárnio e me encara de um jeito que me deixa desconfortável — Quer que eu implore, querida? — sinto o desdém no seu timbre e cerro meu punho. Esse é o problema. Nunca posso diferenciar nada sobre ele. Nunca sei quando está falando sério ou quando tudo é só um maldito teatro.

— Implorar por algo que tomou a força parece estupidez. — comento indiferente e ele gargalha. Uma risada sombria e com um tom quase enlouquecido junto. Encolho meu corpo quase que imperceptivelmente, mas claro que isso não passou batido. Ele percebe meu estremecimento.

— É isso que pensa de mim? Que sou um monstro fodido?

— Sim, uma casca vazia com o propósito único de se curar. Isso é o que eu acho se quer tanto saber.

Ele fica em em um completo silêncio, assimilando o que eu disse ou imaginando uma forma dolorosa de me matar, não sei. Às vezes, a sua máscara está tão bem colocada que mal posso ver suas emoções.

— Acredita que posso te fazer mal? — pergunta.

— Já fez antes, o que mudou agora? — sussurro e como se levasse um tapa, como se sentisse dor, ele abaixa a cabeça entre as mãos. 

— Você tem razão. Nada mudou.  — sua voz abafada se ergue quando ele fica em pé. Acompanho seu movimento e o encaro — Tem um liquido que precisa ser injetado diretamente no meu coração. Somente ele é capaz de fazer com que o meu corpo volte a se regenerar.  

— Não. — digo rápido.

— É esse o acordo. — diz firme.

— Está me ameaçando? — questiono — Não apele para a minha família. O que está pedindo não é justo. 

— Alice. — com um suspiro cansado, ele sai da cadeira e se ajoelha na minha frente — Eu não quero ser um humano. Você precisa fazer isso. — Nathaniel parece tão desesperado, que faz até uma veia pulsar na sua testa. O seu esforço parece grande em querer ser gentil nesse momento. Que conveniente.

— Eu posso piorar ainda mais.  — explico e me afasto dele, caminhando até a janela — Se eu fizer errado, o que pode acontecer? — viro a rosto em sua direção, mas ele já está se levantando.

— Você não vai. — diz ao se aproximar — Não tenho muito tempo. Você tem que me ajudar.

— E se você me ferir?

— Por que eu faria isso?

— Se eu errar, oras. — reviro os olhos — Você pode ficar nervoso.

— Não sou descontrolado, garota. — grunhi — O máximo que vou fazer é te culpar o resto da vida por ter virado um humano sem graça.

— Deus me livre de ter essa perturbação todos os dias. — o clima pesado e cortante parece ter dado uma trégua, pois ele ri alto e meu coração gostou do som. O que é uma merda.

— Isso não pode ser feito aqui. — diz — E também não é no hospital. — fecho a boca com a pergunta travada na garganta, quando ele parece ler minha mente.

— Deixa eu adivinhar. — murmuro — Vai ser na sua casa? — ele assente e vou buscar minha mochila — Dá para terminar em uma noite?

— Não. Três no máximo.

— Por que tudo isso? — pergunto confusa — Enfiar uma agulha em você não é uma tarefa tão demorada.

— Porque não pode ser feito assim. Preciso esperar que meu corpo aceite de dose em dose.

— Suponho que vou ficar com você nesse período?

— Sim.

— Ótimo, porque não tenho dinheiro pra pagar tudo e também não posso voltar para a minha casa. — ele ri novamente e o aperto no meu peito parece diminuir mais um pouco. Isso não é bom.

— Quanto mais rápido você terminar, mais rápido pode viver sua vida longe de mim. — diz, mantendo a sua posição firme, mas o riso amargo que solta, acompanhando de uma longa respiração, faz com que meus olhos se ergam até ele.

— É só nisso que consigo pensar. — retruco e sorrio, mas não recebo um risada de volta dessa vez — Vamos. — murmuro e tento esquecer o barulho estranho dentro do meu peito.

Chama azul Onde histórias criam vida. Descubra agora