| A l i c e |
Um calafrio percorre minha pele e meus olhos ficam marejados ao lembrar da forma como ele pronunciava cada palavra, com seus olhos frios e intensos me encarando. Um nó se forma na minha garganta e mordo meu lábio inferior levemente quando a pressão das lágrimas pinicam meus olhos, embaçando a minha visão por um momento.
Você vai fazer exatamente o que eu mandar
O som distante da sua voz, passeando sem permissão pela minha mente, como se não passasse de um pesadelo ou uma brincadeira sem graça, circula e dispara alertas por todo o meu sistema. Como se uma onda de pavor se espalhasse pelo meu corpo e eu não soubesse como reagir, ou melhor, não tivesse condições de ter qualquer atitude, porque estava paralisada.
Reação é um negócio complicado.
Sua cabeça faz um plano, mas seus movimentos não acompanham. Foi exatamente o que aconteceu. Bom, em partes.
Eu tive medo. Muito, na verdade. E isso não foi nem o pior. A minha curiosidade estava tão aguçada, tão faminta por novidade, que por um breve instante, eu não quis me afastar. Queria descobrir algo sobre aquele homem incomum e intrigante. Como se essa busca fosse mais importante que minha integridade física ou até psicológica. Que grande besteira.
Essa vontade logo foi engolida pelo pânico que sua presença enigmática causava. Nada seria mais interessante do que permanecer viva. Isso sim era um bom plano, o melhor. Obviamente.
Minha mãos suam com a lembrança infeliz e ao recordar com perfeição do desprezo que seu tom era preenchido ao falar sobre a humanidade, como se fosse tão superior ao ponto de se enojar, só me traz uma certeza absoluta. Aquele cara não estava de zoação comigo. Aquilo tudo era muito sério. O que me deixa ainda mais aflita.
Independente do que seja aquele trabalho, é importante para ele. Tão importante que nem seu sorriso sombrio foi capaz de esconder. Seu nervosismo oculto naquela postura imponente não me enganou. Ele está desesperado, o que me deixa em vantagem. Gente assim comete falhas, ficam descuidados. Ninguém pode ser dominante o tempo todo, mesmo que quase tenha conseguido.
Ainda sinto meu coração acelerado e a pulsação firme. O batimento descompassado aumenta e posso sentir o suor frio umedecendo minha testa. O jeito como ele me controlava, deixando apenas minha mente viva e me permitindo presenciar tudo com uma impotência frustrante, sorrindo como se gostasse do que estava fazendo, me torna fraca. Fraca por ceder a sua invasão e não saber como atacar de volta. Diabos, como se combate uma coisa dessa? Água benta e alho? Eu nem sei o que ele é, santo Deus.
Fecho os olhos com força, prendendo o celular na palma das minha mãos.
Sinto a aspereza da escrita e da deformidade do aparelho arranhar minha pele e um raiva começa a crescer em mim, incendiando qualquer pensamento lógico.Como ele ousa?
Respiro profundamente e o ar queima meus pulmões, como se o ódio e o medo de toda essa situação congelasse meus sentidos, como se transformasse tudo em uma bola de chamas maluca. Queimando mais a cada segundo em que não encontro respostas.
Coloco o telefone e a carteira no bolso do jaleco, e a passos lentos, volto ao meu plantão.
— Você parece doente. — Fátima comenta ao me observar passar.
— Está tudo bem. — digo e sorrio francamente, mas ela não parece se convencer.
— Faltam menos de duas horas para o final o seu turno, pode ir embora. — ela se aproxima e coloca a mão no meu ombro — Vai para casa, Alice. — finaliza carinhosamente — Está tudo sob controle por aqui, querida.
Assinto e caminho para o meu armário. Em qualquer outra ocasião, insistiria em continuar de bom grado, mas, infelizmente, não serei de grande ajuda. Aquela perturbação ganhou um espaço considerável e não posso ser imprudente. Não quando se tem vidas em risco. Não quando o amor de alguém esta sob nossos cuidados. Isso jamais.
Depois de guardar as minhas coisas e pegar a minha bolsa, saio apressadamente para a rua. Talvez a distância diminua um pouco os acontecimentos que invadem minha cabeça e me atormentam.
Ainda não amanheceu, o que significa que não tem ônibus algum, então chamo um motorista pelo aplicativo e o espero chegar.
Parece que antes do alvorecer a noite fica mais escura e essa penumbra toda me deixa um pouco assustada, ainda mais depois das minhas últimas vinte e quatro horas. Não. Ainda mais depois que ele apareceu. Tudo estava bem antes disso.
Nath
Esse nome ronda minha mente mais vezes do que gostaria e fico tão perdida nesse pensamento, tentando encontrar algo que faça sentido, que mal percebo a aproximação do carro. Uma buzina quebra o silêncio da noite e dou um sobressalto.
Que impaciente. Não se deve fazer isso em porta de hospital, idiota!
— Boa noite. — digo ao me acomodar no banco de trás, fuzilando o rapaz com meu olhar.
— Boa noite. — responde.
Sinto a movimentação fraca do veículo e sei que em dezenove minutos estarei em casa, então encosto a cabeça no vidro e observo a cidade ainda dormindo passar por meus olhos.
Ao reparar que a rota está diferente, tão fora do normal, me antecipo exaltada.
— O que você está fazendo? — questiono confusa.
— Dirigindo. — retruca secamente.
— Esse caminho é o oposto. — explico — Por favor, abra a porta. — esbravejo e sinto a frieza na minha barriga começar a aumentar.
— Você vai para outro lugar. — comenta, mas sua voz não tem intonação nenhuma, como se estivesse em transe ou até drogado.
— Moço, por favor. — imploro — Abra a porta. — digo apavorada e sou ignorada. Puxo o celular e disco o número da polícia, mas antes mesmo do primeiro toque, sou interrompida.
— Chegamos. — avisa e viro a cabeça lentamente
— 190, qual a emergência?
A voz feminina do outro lado ecoa por meus ouvidos, mas a fala é retirada da minha garganta. Abro a boca, mas o som não vem, apenas o barulho ensurdecedor dos meus gritos na minha mente. Somente para que eu ouça e ninguém mais.
— 190, qual a emergência? Alguém na linha?
Mais uma vez, aquela sensação incômoda de ser controlada se apossa de mim e o arrepio, aquele mau estar horrível, atravessa meu corpo quando o vejo parado e encostado em uma parede alta a alguns centímetros de mim. As mãos cruzadas preguiçosamente pelo tórax e descalço. Se sentindo tão a vontade com o peito descoberto nessa escuridão e sorrindo, como se sequestrar mulheres na madrugada fosse uma coisa natural na sua rotina.
— Olá, Alice. — diz pausadamente e um riso cínico brinca em seus lábios quando percebe que cerro meus dentes impotente — Prazer, sou Nathaniel ou Nath — declara com a voz grossa e aperta os olhos, deixando-os pequenos e mais claros — Entre. — ordena. Abro a porta do carro e desço. Meus pés o seguem imediatamente, como uma maldita marionete humana.
Sem nenhum controle.
Sem nenhum poder.
Apenas uma obediência cega, diante da sua autoridade obscura.
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Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...