| A L I C E |
Encosto na porta e suspiro.
Ele não diz nada, provavelmente se afastou rindo. Seu humor esquisito parece ter voltado. Alias, tenho certeza disso. A referência sobre o sexo deixou isso bem claro.
Não preciso mais ficar aqui, certo? Aparentemente, duas doses foram o suficientes para despertar a fera de novo. Como alguém consegue transitar com tanta facilidade entre ser um cara legal e um completo cretino? Um mistério que não estou no clima de desvendar.
Pelo menos a noite de ontem abaixou essa febre insana que sentia queimar meu corpo. Ou não. Na verdade, noite passada tinha elevado a temperatura a um grau quase sufocante. O que fez diminuir os ponteiros para baixo, quase apagando a brasa, foi esse seu maldito temperamento agora cedo. Nunca sei se estou lindando com o anjo ou com o diabo.
Ando de um lado para o outro no quarto, como se a raiva que senti pelo seu comportamento estranho ainda borbulhasse no meu sangue de um jeito até mais forte. Olho para o jardim a minha frente, mas nem estou interessada, só queria poder colocar ordens nos meus pensamentos. Achei, por um breve segundo, que não iríamos mais continuar com aquela destruição mútua. As alfinetadas e toda a aquela grosseria que nos cercava tinha diminuído drasticamente, até não ter mais. Que diabos foi que eu perdi? Nathaniel não pode me tratar feito lixo e depois esperar que eu abra as minhas pernas para ele.
Solto uma lufada de ar e coloco a mão aberto sobre o vidro, fazendo-o embaçar na mesma hora. Era tudo muito simples. Sexo, sexo e mais sexo, e depois até nunca mais. Não parece tão difícil, mas ele tem o dom de complicar tudo, só pode. Talvez tenha acordado pela manhã e odiado a si próprio. Se arrependido. Quem sabe? Ele parece o tipo de pessoa que prefere distribuir ofensas ao invés de gentilezas. Idiota prepotente.
Suas palavras continuam queimando dentro de mim, conforme as assimilo sem parar. Aquilo doeu. Não que eu tenha criado algum sentimento por ele enquanto dormir, mas foi um chute no meu ego.
Não espere uma aliança
Vai se foder. Isso sim. Depois os humanos que são emocionados. E esse pensamento faz um outro ainda maior passar pela minha cabeça. Ele está se recuperando, o que significa que o pingo de humanidade que estava adquirindo, se foi. Isso faz mais sentido. Quanto mais curado, mais otário. É um belo slogan para um anjo que parece mais um demônio.
Caminho até o banheiro e pego minhas coisas, tudo que vou encontrando sendo meu, enfio dentro da mochila de uma só vez. Não me importo, só quero sair desse lugar. Sair de perto dessa bomba instável que é ele.
Posso dizer que o congresso durou menos que o esperado para os meus pais e que voltei mais cedo por esse motivo. Meus olhos já estão ficando normal, então posso inventar qualquer desculpa médica e acreditarão facilmente. Farei isso caso questionem sobre a cor da íris e tudo ficará bem. Em relação a faculdade e o hospital, alego algum milagre na família, já que um parente estava doente e de repente se curou. Nada que me trará problemas também. Bom, é isso.
Estou livre.
Abro a porta com a mochila nos ombros e o encontro encostado na parede ao lado do seu quarto. Um tanto pensativo e distante.
— Vamos. — ainda sem a maldita camisa, Nathaniel me encara com a expressão fechada. Nenhuma piada. Nenhuma reação. Apenas aquela cara indiferente e o semblante duro.
— Arrume as suas coisas, então. — diz.
— Já arrumei. — aviso e bato a mão nas costas, mostrando a mochila cheia.
— Está feliz agora? — questiona e se aproxima.
— O que?
— Feliz por ir embora. Não era isso que tanto queria? — ele solta um riso amargo, mas também cínico. Como se estivesse caçoando de mim apenas dentro da sua própria cabeça.
— Era exatamente isso. — sustento seu olhar demorado e ficamos em um silêncio horrível. Mas quando ele levanta a mão, ajeitando uma mecha atrás da minha orelha, congelo. Apenas a sua aproximação faz acender esse fogo que ele causa e pigarreio sem jeito, quando lembro do seu corpo sobre o meu, entrando e saindo me deixando ofegante. Mas não sou brinquedo de ninguém. Recupero minha dignidade e ignoro a pontada de desejo querendo fazer seu caminho em mim.
— O que está fazendo? — questiono e me movo para o lado, tomando uma curta distância do seu toque. Ele abaixa o braço rapidamente, como se nem ao menos tivesse se dado conta do seu movimento.
— Nada. Vou trocar de roupa e podemos ir. — quase corre ao se afastar e seguro o riso.
— Não vai apagar a minha memória? — grito — Porque eu quero muito esquecer tudo. — provoco e coloco o peso no chão para esperar que se vista, porque olha, sinceramente, é difícil sentir raiva dele quando fica sem camisa. Se ele me dissesse que era um lenhador, teria acreditado sem pestanejar.
— Vou, mas não aqui. — responde ao reaparecer e passar por mim como um raio, segurando com força os capacetes em ambas as mãos.
O caminho de volta é péssimo.
Sei que não somos amigos, mas acho que passamos da parte de ser conhecidos também. Ele não me pede para passar os braços ao redor do seu corpo dessa vez, o que eu também não faria com toda a certeza. Aperto os ferros na lateral, descontando no pobre coitado toda a frustração que sinto inflamar meu peito. Pelo menos, ele está indo devagar. Não é um total babaca.
A rua começa a ficar mais familiar e sei que estamos chegando. Não sei ao certo o que esperar desse negócio de tirar essas lembranças, mas ele precisa colocar alguma coisa no lugar, não posso ficar vivendo a minha vida com um branco de dias. Isso tiraria a minha paz.
Nathaniel estaciona a moto há um quarteirão de distância. Nem me importo com o bolo na minha nuca, assim que passos os dedos e sinto o nó entre os fios, suspiro aliviada. Isso não vai mais acontecer mesmo.
— Deixe a janela aberta. — pede ao descer — Entrei alguns minutos depois de você. — assinto e apoio o capacete que estava usando no banco da sua moto — Isso tem que ser feito, Alice. — diz baixo.
— Não estou questionando nada. — começo o caminho e não olho para trás. Não quero ver os seus olhos claros e lindos me encarando de volta. Não quero ver a blusa marcando sua musculatura como se fosse desenhada sobre a pele e nem o seu cabelo bagunçado. Não quero olhar para as minhas mãos que suam e nem reparar no frio que assenta a minha barriga.
Esperei tanto que esse dia chegasse que deveria ficar feliz. Só preciso que o meu coração pare de palpitar desse jeito diferente. Eu sabia dos problemas do Nathaniel quando o convidei para a minha cama ontem. Não posso esperar receber rosas, quando ele é somente espinho.
Foi bom, mas estava fadado ao fracasso no segundo em que começou. Eu queria diversão e encontrei, então por que não consigo me sentir satisfeita?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...