| A L I C E|
Respiro fundo ao abrir a porta, repetindo mentalmente a história ensaiada.
— Olá. — digo alto ao ouvir barulhos na cozinha.
— Al? — ouço seus passos antes mesmo de vê-lo, meu pai caminha apressado na minha direção e sorri, meio surpreso, mas feliz — Aconteceu alguma coisa? Querida, Alice está aqui. — coloco a mochila sobre o sofá e sorrio.
— Não, está tudo bem, só acabou mais cedo mesmo.
— O que é isso nos seus olhos? — ele se aproxima e franze as sobrancelhas — Meu Deus.
— Ah isso? — solto uma risada nervosa e o encaro, transmitindo a segurança que minhas palavras vão precisar para não deixá-los desconfiado — Foi só um teste para um novo medicamento de catarata. — comento tranquila e sorrio — Oi, mãe. — dou a volta no seu corpo pequeno com os meus braços e a aperto forte.
— E por que muda a cor? — pergunta curiosa — É reação? Você está bem? É tão estranho te olhar assim, menina. — ela se atropela nas perguntas e troca o pano de prato de lado, jogando-o sobre o ombro esquerdo.
— Estou ótima, mas bastante cansada. — bocejo para acentuar e continuo — É só um efeito colateral. Legal, não é? — sorrio — Eu me acostumaria com isso. — digo falsamente.
— Eu não. — diz rindo e meu pai a acompanha — Vai querer almoçar? Posso esquentar para você.
— Vou tomar um banho e dormir, mãe. — aviso — Não precisa ir lá me chamar, é bem capaz de que eu só acorde amanhã.
— Você está bem mesmo? Parece abatida.
— Estou sim, acho que é só o cansaço mesmo. — minto e ela acena, mas seu olhar curioso não me engana. Arrasto a mochila, indo para o meu quarto antes que ela ainda pergunte mais coisas. O que eu não duvido.
Passo o trinco pela porta e abro a janela.
Chegou a hora.
Sento na cama e espero.
Estou tentando evitar que meus pensamentos tomem certo rumo. Um rumo com os olhos azuis e a voz de trovão. Vai ser bom não ficar pensando nele a cada maldito segundo. Vai ser bom não sentir esse peso que faz meu peito doer. Vai ser bom. Amanhã tudo será novo de novo e essas lembranças não vão vai me tirar o sossego.
Céus, a quem estou querendo enganar?
Se isso fosse de alguma forma uma escolha minha, não iria querer apagar nada. Por mais que em alguns momentos a vontade de ter apertado minhas mãos ao redor do pescoço fosse grande, em outras, eu ansiava o seu toque. Talvez a parte de menina má que exista em mim, tenha se afeiçoado a essa aventura. Deus. Isso é um maldito dilema absurdo.
Vejo uma movimentação rápida na cortina e quando ergo o olhar, o encontro aqui dentro. Nathaniel cruza as mãos para trás e anda lentamente na minha direção. O comportamento um total oposto da última vez que esteve aqui. Não está com aquele riso maldoso ou com a expressão de entediado. Ele parece quase... triste. Ou aliviado. Nunca vou saber. Ele é realmente um expert em esconder qualquer emoção, embora meu coração prefira a primeira opção.
— Acho melhor você escrever algumas coisas. — diz e desliza pela parede até se sentar no chão — Você inventou algumas desculpas e precisa se lembrar delas. Escreva o que quer que fique no lugar das nossas. — balanço a cabeça quando entendo o seu ponto e puxo o celular do bolso. Nossas.
— Vou fazer isso. — digo.
— Certo. — começo a digitar uma nota, mas o seus olhos parecem não se desviarem de mim. É uma sensação quase esmagadora, como seu pudesse sentir a pele esquentando apenas pela intensidade do seu olhar.
Endireito a coluna, tentando me livrar desse desconforto e o encaro de volta.
— O que foi? — pergunto e ele sorri. Aquele sorriso que despertava borboletas no meu estômago. Aquele sorriso que ainda faz isso, mesmo que eu me negue a sentir qualquer coisa.
— Nada. Continue. — ele gesticula e mantém os lábios apertados, como se fosse para conter alguma risada ou algo que não queira dizer. Mais uma coisa que não consigo saber desse enigma que é o Nathaniel.
— Depois eu quem sou esquisita. — murmuro e sua risada alta e linda, quase estraga tudo — O barulho, meu filho. — digo exasperada — Você perdeu o juízo?
— Acho que sim. — sussurra e faço sinal de silêncio sobre a boca — Não deveria ter agido daquela forma com você mais cedo. — isso pareceu sincero, apesar de ser tarde demais.
— Sem problemas. — replico — Outra coisa que vou esquecer. — completo, mas ele não acha graça, apenas me observa de um jeito que faz minha pulsação aumentar. Abaixo a cabeça e volto a escrever. Depois de alguns minutos, sorrio pela ideia fantástica e entrego o aparelho para ele.
— Não parece muito. — diz.
— Só fiquei um dia e meio fora. — acrescento como se fosse o suficiente e talvez não seja mesmo, mais é difícil bolar algum plano melhor com ele tão perto. Não sei se meu quarto sempre foi pequeno assim ou se a sua presença parece se agigantar, diminuindo tudo ao redor, mas volto para a minha cama rapidamente.
— Certo.
— Vai doer? — questiono.
— Não. — responde pausadamente.
— Já apagaram a sua memória antes? — pergunto e fico em pé.
— Não que eu saiba. — diz e estica as pernas, deixando o espaço ainda mais apertado.
— Então não pode afirmar que é indolor. — ele revira os olhos e depois se concentra nas minhas palavras — Vou ao banheiro rapidinho. — aviso e encosto a porta ao entrar.
Meus olhos estão quase naturais e pelo avanço que já teve em algumas horas, acredito que ao acordar amanhã não haverá mais nenhum vestígios do poder dele em mim. Espero que sim, se não acho que enlouqueço. Sério. Imagine se olhar no espelho e não entender a cor dos seus próprios olhos. Seria muito perturbador.
Passo a água gelada da torneira no rosto e inspiro fundo. Seco minhas mãos na toalha grossa e felpuda esticada sobre o box e sorrio.
É isso.
Se vou viver uma vida de aventura ao invés de tanto estudo e trabalho, isso será um ótimo começo. Que Deus me ajude, porque acho que estou perdendo a porcaria da cabeça.Puxo um pedaço de papel higiênico e abro a gaveta em busca de algum batom escuro.
Enfio o bilhete na gaveta e volto para o quarto.
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Chama azul
Fantastik| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...