| N A T H |
Torço o nariz com o cheiro ruim que está no quarto. Ele me atinge em cheio assim que fecho a porta. É algo quase químico. Uma mistura forte e quase insuportável, parecendo ovo podre. Talvez seja assim o inferno em chamas, o que eu não tenho a menor intenção de descobrir. Claro que não é a primeira vez que sinto essa merda e sei também que não será última. Só é difícil de se acostumar mesmo.
A baixa luminosidade que vem da janela esconde parte da aparência do demônio. Não que eu queria ver, porque não existe novidade. Não ficaria surpreso. Eles são exatamente a cópia de um humano, assim como eu. A diferença é apenas no fedor. Como se os desgraçados expelissem por cada poro a podridão que existe por dentro. Quase posso ver o brilho negro que envolve sua pele. A cor que exala pura maldade.
Sua risada baixa vai aumentando a medida que me aproximo. Desesperado ou apenas provocativo. Foda-se. Independente do que seja, não faz com que eu pare de caminhar em sua direção. Cerro os punhos ao sentir meu corpo convulsionando. Posso sentir a vibração queimando os meus ossos e acelerando meus batimentos, mas isso não é a raiva pelo ferimento que ele causou em mim. Não. Isso é algo maior do que uma vingança pequena e pessoal.
É a excitação de uma luta milenar que bombeia expectativa por cada fibra minha e não posso controlar essa reação, porque é mais uma batalha na guerra eterna entre anjos e demônios, e isso mantém a chama dentro de mim fora do meu próprio domínio, querendo incendiar a qualquer custo, para livrar o mundo de mais um soldado dos principados. Um soldado a menos para fazer parte do exército dos anjos caídos, que agora são malignos.
Suas mãos estão amarradas e mesmo assim, se contorcem de um lado para o outro repetidamente. Seus dedos ficam duros em um posição estranha. Olhar isso é nojento. Provavelmente seria assustador para uma pessoa comum, mas não para mim. Virados para trás como se não houvessem terminações em seu corpo. Torcidos de uma forma repulsiva.
— A quem você pertence? — cruzo os braços sobre o peito e o encaro. Sua cabeça balança fortemente e seu riso fica maior. Mais sombrio e extinto de qualquer emoção.
— A um de seus irmãos. — sussurra com a voz baixa e grossa como um trovão. Sei que todo esse aperto que move seu corpo descontroladamente, é a pressão que a minha presença exerce.
Ele não pode não me responder. Ele não consegue não acatar a uma ordem. Não consegue mentir para nós. Ele apenas se curva, porque essa é a lei. É assim que funciona essa batalha espiritual que vem sendo travada desde os primórdios. O céu domina o mal e o mal quer os homens. Essa é a luta em que estamos, em que nascemos para servir com tanto fervor. Proteger a humanidade e eliminar os espíritos perversos de persuadir a mente humana.
— Diga o nome. — murmuro e recuo um passo quando a movimentação forte do seu corpo em tremulação, faz a cadeira se desequilibrar, levando-o ao chão em um baque.
— Azazel. — diz com os lábios cerrados. O barulho que sua garganta emite é como um bicho. Um rosnado firme e cheio de intenções. Ele odeia estar rendido e fraco. Parece odiar não se equiparar a nós e com o nosso poder. E nem preciso me esforçar. Estar aqui na sua frente é o suficiente para eliminar qualquer vestígio de sua força, mas ele é apenas um soldado. Uma peça sem muito valor e autoridade. O seu chefe sim. Azazel. Essa sim, será uma briga e tanto, porque excluindo a maldade da equação, somos iguais. Em tamanho e em força. E são eles quem eu quero. Os caídos. Os traidores.
— Aonde o encontro? — questiono e empurro a lateral da sua perna com o pé.
— Isso não é possível. — responde e assinto, esperando uma explicação decente — Ninguém sabe da sua localização.
— Nenhum soldado, você quer dizer. — acrescento.
— Sim. — seu maxilar parece prestes a trincar com a fúria em que o trava — Somente os príncipes sabem um dos outros.
Escutar isso faz meu estômago revirar. A hierarquia que construíram apenas para espalhar o caos e o medo, tornando cada pecado como uma medalha e cada morte como um prêmio ainda maior. É revoltante ver no que se transformaram. No que a inveja fizeram nos corações, antes puro e leve, e agora tomado de uma escuridão absoluta.
— Por que estão atrás de mim? — pergunto, mas sei o motivo. Sei muito bem a porra da razão. A cada novo amanhecer, um dos soldados deles deixam de respirar. Um filho do diabo a mais que retorna para casa. Esse é um trabalho cansativo e longo, mas necessário.
— Não querem você liderando essa armada. — diz e se inclina, curvando o corpo em uma bola.
— Eles temem a mim. — afirmo.
— Sim. — sussurra e volta a sorrir — Mas temem ainda mais a profecia.
— Explique. — ordeno. Do que ele está falando?
— Você não conhece? — retruca com sarcasmo — Ela percorre com o vento, como um sussurro entrando de porta em porta. Será pronunciada sem parar até o dia em que for cumprida.
— Você não faz as perguntas aqui. — replico pausadamente — Qual é a profecia?
— Eles não aguentam mais escutar os dizeres antigos. Estão fartos das escrituras.
— Qual é a profecia? — vocifero ao me agachar, segurando a gola da sua camisa e o forçando a se levantar. Ele apenas gargalha, possuído de uma alegria mórbida e doentia.
— Por isso querem destruir você, Arcanjo Nathaniel. — seu olhar demorado fita cada parte do meu rosto e transforma o seu em uma carranca séria. Estico o braço para trás e acerto sua barriga com a minha mão fechada. Ele se retrai, mas não se abaixa e nem revida. Apenas volta a me encarar, mantendo dentro de sim a ira que vejo nublar seu semblante feio, porque quando a atenção de um líder do céu fica sobre um soldado do inferno, não existe retaliação. Não existe afronta. Só existe a obediência e a fraqueza disposta na minha frente. Por isso o ataque naquela noite. Por essa motivo conseguiu me atingir. Meus olhos não estavam nele. Eu estava distraído e isso quase custou a minha vida. Um erro que não irei cometer novamente.
— Fale. — ordeno outra vez.
— A chave para a paz será encontrada quando a dúvida deixar de existir no coração do guerreiro mais forte. Quando a decisão por ele for revelada, ignorando a dor dentro de si, apenas para o bem maior, nesse dia a Terra irá tremer e todos sentirão o impacto. Nos céus e nos oceanos. Porque, nesse dia, o poder dele se tornará ilimitado, sendo capaz de extinguir sozinho toda a escuridão que caminha pelas sombras. — suspiro profundamente ao ouvir suas palavras, sentindo meu corpo estremecer ao resgatar em alguma memória perdida na minha mente, uma voz que recitava com perfeição esse mesmo texto.
Isso terá fim um dia, Nathaniel. Essa é a profecia que nos levará ao descanso eterno.
— Existe alguma dúvida vivendo dentro de você, querido anjo? — indaga se divertindo — Eu acho que sim. Posso sentir esse cheiro horrível. — ele puxa o ar pelo nariz com força e cospe no chão — E se eu posso, eles também podem. — avisa — E é o cheiro de uma humana. — ele volta a gargalhar e meus pulmões parecem se fechar. Meus passos se cambaleiam e a risada dele se torna apenas um eco em meus ouvidos.
Alice
Puxo de uma prateleira a longa espada, com a empunhadura talhada de pequenas asas em ouro e a lâmina tão afiada como vidro recém polido. Banhada nas águas do Mediterrâneo com as gotas do Mar Morto, abençoado para florescer, pouco depois de dizimar Sodoma.
Ergo a grande lâmina e a desço sobre o demônio. Seu sangue respinga em todo meu torso e ele rugi alto uma última vez, como se ainda houvesse uma centelha de esperança em ser encontrado ou apenas pelo ódio em ser derrotado tão facilmente. Que se dane. Realmente não dou a mínimo para o seu lamento. Largo a espada sobre a mesa quando seu corpo para de se mover e me afasto atordoado com o peito sufocado.
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Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...