| A l i c e |
Corro até o banheiro na hora do meu intervalo e passo uma quantidade generosa de água no rosto. A leve maquiagem que uso, borra um pouco, mas não me importo. Não agora. A frieza talvez me ajude.
Levanto a cabeça e encaro meu reflexo pelo espelho. Minhas bochechas estão coradas e não é no bom sentido da coisa. Não é um rubor de vergonha. É um pânico que sinto instalado no meu peito desde que vi aquilo.
Ou imaginei.
Não sei.Estou tão confusa.
Aquilo foi real, certo?
Puxo um papel e limpo os cantos dos olhos.
Quem poderia acreditar em uma história dessas?
Ao pensar no buraco, bem acima da costela dele, onde deveria escorrer sangue ao invés de um nada, faz um arrepio percorrer meu corpo. Uma sensação estranha e apavorante. Involuntariamente, cerro meus dentes e fecho o punho.
Aquilo, definitivamente, não foi uma alucinação.
Eu não poderia inventar tudo.
Claro que a privação do sono tem seus males, sei disso, mas passei por isso vezes demais e sei como é a reação do meu organismo, e certamente, não é me deixar parecendo uma maluca. Fico estressada e um pouco mau humorada, mas nunca assim. Nunca com visões de um cara quente e sem sangue.
Posso estar esgotada, mas não estou carente. Meu cérebro não criaria todo aquele cenário só para me mostrar que preciso de uma folga e uma transa.
Passo meu dedo indicador de um lado para o outro na frente dos meus olhos, tentando encontrar algum comportamento diferente, mas minhas pupilas não estão dilatadas e estou reagindo normalmente aos estímulos.
Maravilha, não fui drogada e nem hipnotizada, pelo menos.
Consigo recordar com perfeição da cor clara da sua pele, do seu abdômen definido e limpo, tão limpo, que a única evidência de vida dentro dele, era do subir e descer do seu peito com a respiração calma.
Ainda assim, o rasgo na camiseta que usava não possuía nenhuma mancha vermelha e a perfuração que a bala causou estava ali, exposta bem na minha frente. Como se em processo de cicatrização ou apenas já estancado.
Céus, estou enlouquecendo?
Fecho os olhos por um instante e o sorriso cínico daquele rapaz me vem a mente, como se estivesse achando graça de uma piada que só ele poderia entender, fazendo com que eu me sentisse uma tola por não conseguir controlar o que quer que tenha feito comigo.
Ele não foi fruto da minha imaginação. Não mesmo.
Foi tão real quanto o ar que respiro.
Enquanto caminho pelo refeitório, perdida em tantas perguntas, que não poderia nem as enumerar, acabo esbarrando em Bruno. Um enfermeiro simpático demais. Sua fama não é das melhores e sempre que posso, evito cruzar seu caminho.
— Ei, Al. — sorri.
— Desculpa. — digo — Não vi você.
— Sem problemas. — ele se aproxima e tenta segurar minha mão — Dia estressante? — questiona curioso.
Você não faz ideia.
— Só cansada mesmo. — respondo e puxo meus dedos do seu toque — Bom, vou comer alguma coisa. — maneio a cabeça levemente e o deixo para trás sem esperar uma resposta.
Não sou antipática, pelo contrário, falo até demais com qualquer um, mas existem algumas pessoas no mundo que não merecem muita atenção, sabe o que quero dizer? Nem sempre uma conversa vem acompanhada de alguma intenção, as vezes é só simpatia mesmo, mas essas pessoas acreditam que sim, então levam tudo para o outro lado. Tipo o Bruno. Por isso esse distanciamento.
Trabalho nesse lugar há quase dois anos e conseguir ser residente aqui não foi fácil. Conciliar os estudos, que tomavam boa parte do meu tempo, com as horas de aprendizado real, confesso que me sugam de uma forma quase sufocante, mas como minha avó sempre diz "Não existe um bonito arco-íris sem uma tempestade", o que é meio distorcido, mas exemplifica o que quero dizer. Não existe sem um sol também, mas parei de questionar seus ditados, a linha de raciocínio dela é enorme e eu nunca tinha argumento suficiente.
Coloco o maior copo possível na máquina de café. O cheio forte invade meu nariz e respiro profundamente, fazendo aquele aroma divino acordar tudo dentro de mim. Sinto o cansaço chegar sorrateiro e pesar nos meus ombros, mas ainda tenho uns bons minutos no plantão, então nada como esses grãos para me manter em pé. Um mal muito necessário.
Sento-me na mesa mais afastada e coloco o celular sobre ela. Abro um pacote de açúcar e despejo tudo dentro do copo. Enquanto misturo no líquido fumegante e espero que esfrie um pouco, sou transportada novamente para a inquietude da minha mente.
Como aquele homem pôde desaparecer e não emitir nenhum som?
Como veio parar aqui, na verdade? Ele estava sozinho quando o encontrei no corredor.
Um semblante despreocupado marcava seu rosto quadrado, como se estivesse esperando alguma coisa, mas sem nenhuma pressa. Como se não pudesse ser visto.
Suas pernas longas estavam esticadas e cruzadas. Isso não é posição para quem estava ferido tão seriamente ou é? Até hoje, todo paciente que entra por nossas portas ou estão gritando, ou estão em posição fetal em cima da maca, se contorcendo em uma agonia sem fim.
Nunca sorrindo.
Nunca sem sangue.
Nunca sem dor.
Levanto e descarto meu lixo, voltando em seguida para o trabalho. Tenho alguns prontuários que preciso revisar e liberar duas pessoas com alta que a médica chefe assinou. Graças a Deus não houve casos graves essa noite, fico feliz quando isso acontece. Adoro o que escolhi fazer, mas meu coração se despedaça quando coisas ruins acontecem, por isso essa escolha. Gosto de tentar amenizar o sofrimento delas. A alegria de salvar uma vida é indescritível.
Meu celular ainda continua no silencioso. Meus amigos sabem que não fico online durante os plantões. Qualquer distração pode ser a última e não pretendo correr esse risco. Por essa razão, decido esconder em uma parte bem pequena da minha mente o que ocorreu mais cedo. Posso matutar sobre essa coisa mais tarde e em casa, com uma bela taça de vinho e os pensamentos mais em ordem.
Quando estou aqui, entrego tudo de mim e é assim exatamente que precisa ser. Gosto de pensar que agrego algo de bom em um mundo tão perdido de maldade.
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Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...