| A l i c e |
O plano da Ana foi cancelado quando recebi uma ligação do hospital ao anoitecer. Aparentemente, uma das alunas pegou uma virose ou só está de ressaca, ainda não sei. Pelo menos consegui descansar, dormi o dia todo e para a minha surpresa, foi um sono tranquilo, mesmo que minha cabeça estivesse uma bagunça, com um barulho que mal conseguia controlar.
Assim que chego para o meu plantão, coloco o jaleco e caminho em direção a sala de espera.
— Querida, veja o quarto 112, por favor. — Fátima, a médica chefe e minha professora na graduação, me aborda assim que viro o corredor.
— Claro. — confirmo — Alguma observação?
— Não. Ela está apenas dizendo coisas desconexas, peça um exame toxicológico e uma limpeza no seu organismo. Não queremos que tenha uma overdose.
— Pode deixar. — digo.
Como em todo final de semana, o fluxo de pacientes aumenta exponencialmente. Excesso de bebida, acidente, drogas e até brigas, sempre são os maiores casos quando a madrugada se aproxima. Quanto mais escuro o céu, maior a movimentação no Pronto Socorro.
Que Deus me perdoe se esse pensamento parecer de algum jeito egoísta ou sádico, mas aprendo mais e absorvo uma quantidade absurda de conhecimento quando trabalho nesses picos. Não fico feliz com isso de maneira alguma, mas aprendizado é aprendizado e esses atendimentos me preparam para ser uma doutora melhor.
Depois de algumas horas e com a barriga roncando, aviso que vou tirar meu horário de intervalo e vou até meu armário. Guardo o jaleco e pego a minha carteira. Porém, antes de ir até o refeitório, marcho até o banheiro. Preciso lavar o rosto e meus braços. Isso faz parte do processo de segurança e nunca, nunca esqueço desse passo. Não posso arriscar estar contaminada ou transmitir qualquer coisa para alguém. Muitos acham exagero e fazem piadas comigo sobre isso, mas não me importo.
Apenas três cabines contemplam esse espaço, ele é reservado apenas para funcionários e por ser sábado a noite, está vazio.
Arregaço a manga da blusa até o cotovelo e antes que eu possa liberar o sabão sobre as minhas mãos, um movimento rápido pelo espelho me assusta.
Giro o corpo rapidamente com o coração acelerado e meu grito fica preso na garganta ao ver aquele homem estranho de ontem, encostado no batente da porta.
Como naquele episódio, sinto a pressão da minha voz querendo sair, mas presa. Como se houvesse uma linha fina a segurando para não sair. Novamente aquela sensação de feitiço me atinge, tomando o controle dos meus sentidos.
— Faça isso, Alice. — ele se aproxima e posso sentir meu corpo recuando para longe ao ouvir seu tom grave — Ninguém vai efetivar uma residente se ela parecer uma louca. — ouço seu riso cínico e o ódio queima meu peito — Porque é exatamente o que vão pensar quando eu desaparecer e encontrarem você aqui sozinha berrando descontrolada. — ele passa o dedo pelo lábio inferior e a intensidade do seu olhar me deixa desconfortável. Como se ele tivesse alguma vantagem sobre mim, como se já me conhecesse.
— Como sabe que ainda sou estudante? — questiono furiosa — Você é algum perseguidor ou algo assim? E como é que eu não consegui gritar? O que está fazendo comigo? — sinto a tremulação no meu timbre, quando minhas palavras soam altas e desesperadas.
— Não faça disso uma cena, garota. — intervém ríspido, com uma arrogância que me enoja — Vocês são todos muito emocionados. — replica com desdém.
— Vocês quem? — retruco confusa — Estamos a sós. — sinto minha perna começar a fraquejar e me apoio na pia, quando o medo atravessa meu corpo.
— Humanos. — murmura — Sempre tão sentimentais e exaltados. — sua mão balança enquanto fala, como se eu fosse uma criança aprendendo uma nova lição.
— Você é algum monstro, por acaso? — indago sarcasticamente — Pois é o que parece.
— O que eu sou não é da sua maldita conta, mas você não está errada. — confirma e cruza os braços, deixando seu peitoral ridículo mais evidente.
— O que você quer de mim? — pergunto — Por que está aqui?
— Você é sempre irritante assim? — revira os olhos e avança um passo na minha direção — Tantas perguntas. — diz e estica o braço, deixando a palma aberta sobre o espelho.
— Então comece a responder. — desafio e ele sorri. Um sorriso bonito demais para um cara que parece horrível.
— Preciso de você para um trabalho. — comenta — Observei alguns durante a semana e você foi a única que não contou o que viu em mim.
— Eu já tenho um trabalho. — argumento — Não preciso de outro. — explodo e diminuo a distância entre nós — E como assim fui a única? Aquilo foi algum tipo de teste?
— Isso não foi um convite. — sussurra, abaixando seu rosto até estar na altura do meu — Você vai fazer exatamente o que eu mandar. — conclui confiante.
— Vai me obrigar de novo? — pergunto — Já fez isso duas vezes. O que tem de errado com você, afinal?
— Esteja pronta. — interrompe, ignorando minhas questões.
— Não sei qual é o seu problema, mas não atendo pacientes da psiquiatria. — empurro-o pela barriga, tentando sair o mais rápido possível — Sai da minha frente, cacete. — esbravejo quando ele não se move, mesmo com toda a minha força em atrito com o seu corpo, não consigo qualquer movimento.
— Esteja pronta. — repete e abre espaço para que eu passe — E coloque o outro perfume, esse de hoje não combina com o cheiro natural da sua pele. Prefiro o outro.
— Vai se ferrar, seu doente. — vocifero e saio apressada, ouvindo sua risada baixa e rouca ao bater a porta.
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Chama azul
Fantasy| SINOPSE | Aos vinte e seis anos, Alice Vieira estava feliz com o rumo que sua vida estava seguindo. Faltavam apenas alguns meses para se formar na faculdade, onde com honras, foi selecionada para uma bolsa integral em Medicina. Morava com seus pai...