Capítulo 36

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| A L I C E |

— Achei que ficaria mais tempo fora.  — Fátima, minha professora e chefe, pergunta quando passo pela porta da sala de aula. Respiro fundo e a encaro. 

— Deu tudo certo. — comento e travo um sorriso falso no rosto — Foi quase um milagre a recuperação. — minto descaradamente para sustentar a história que soa muito idiota e errada de inúmeros ângulos agora. Céus, mal posso acreditar que criei toda essa bagunça. Engulo em seco quando meu coração acelera e forço meus lábios a permanecerem erguidos. 

— Que bom, querida. — murmura — Sinto muito por ter agido daquela forma com você, não imaginava que estava passando por aquilo. — seu tom é brando e quase carinhoso, o que fez com que o meu peito parecesse sufocar. Como se esse gelo que sinto na barriga, fosse a culpa começando a me consumir e deixando um rastro de vergonha por toda a minha pele, sem que eu pudesse ruborizar ou enfiar a minha cabeça em um buraco qualquer. 

— Sem problemas. — respondo, sem ter a mínima ideia do que esteja falando. Como ela agiu comigo?  Não sei, mais um mistério. Espero que essa fase de amnésia passe logo, porque olha, sinceramente, é muito difícil manter a expressão serena quando estou enlouquecendo por dentro. 

Esse é o problema da mentira. Ela começa pequena, ingênua na sua forma obscura, mas até ficar maior do que você com o tempo e levar de vez a sua paz.  Embora não possa voltar atrás, por mais que deseje isso com muita força, preciso lidar com essa porcaria que criei. 

— Fico feliz que esteja de volta. — sorri e acena, voltando para a sua mesa devagar — Pode tirar a semana, Alice. — murmura ao longe e quase me encolho, porque não mereço gentileza  — Alteramos a escala no hospital depois do seu e-mail, então pode ficar tranquila. — assinto e me afasto o mais rápido que consigo. 

Adoro meu trabalho. Amo, na verdade. Mas não posso negar que esses dias vieram a calhar. Parece que tenho muitos pensamentos para colocar em ordem e muito perdão para pedir a Deus. Engraçado como a sensação estranha, aquele de faltar algo, como se esse quebra-cabeça nunca fosse capaz de ficar completo, ainda martela vezes demais na minha cabeça.

Desde a hora em que abri os olhos pela manhã, fiquei tentando entender o que estava acontecendo comigo, mas não cheguei a nenhuma conclusão. Já se passaram horas e ainda continuo perdida nesse mar de confusão. 

O que estou perdendo? 

O que deixei passar? 

Essa agonia parece crescer a cada minuto e afundar meu coração como uma maldita âncora, pois sinto como se estivesse deixando escapar alguma parte importante por entre os meus dedos e que não fosse possível recuperar. Mesmo que eu direcione toda a minha força, as lembranças parecem ter me abandonado e essa minha luta tentando desvendar o desconhecido está me deixando maluca.

Quem é o homem por trás daquele perfume tão inebriante que estava grudado em mim?

Tantas perguntas. Nenhuma porra de resposta.

Coloco a mochila na cadeira vaga ao lado e abro o caderno. Mordo a tampa da caneta conforme a explicação da matéria se desenrola, mas, por mais que me esforce, não consigo prestar a atenção que deveria. Um incomodo fica pinicando dentro da minha mente e como se as palavras da professora fossem estranhas para mim, meu cérebro não consegue se concentrar. Não existe foco, o que é perturbadoramente estranho, pois não sou assim. Essa pessoa sentada aqui agora, com a mente em completo desastre, não sou eu. Definitivamente, não sou eu.

Talvez eu tenha sido abduzida. Isso soaria mais real para mim.

O que, diabos, aconteceu com a minha vida?

Caminho pelo campus na hora do intervalo em busca de alguma sombra, pois o sol parece ter nascido com força total hoje. Sinto o leve suor umedecer minhas costas e assim que avisto um espacinho livre, acelero meus passos.

— Tivemos a mesma idéia. — uma voz grossa soa baixo ao meu lado e viro o rosto, tampando parte do sol com a mão.

— Pode ficar. — digo — Procuro outro lugar. — ele sorri e balança a cabeça em negativa. Mesmo não tendo a intenção, percorro todo o seu braço coberto de tatuagem e suspiro. Ele é gato.

— Acho que podemos dividir o espaço. — suas pernas longas se esticam no chão, quando ele se senta preguiçosamente — Vamos lá, prometo não atrapalhar o que quer que fosse fazer.

— Só iria pensar. — murmuro e apoio a mochila na grama.

— Eu também. — acrescenta sorrindo e pela minha falta de resposta, ele continua  — Está perdendo tempo. — ele gira o pulso, olhando diretamente para o relógio e continua — Restam menos de quinze minutos agora para voltarmos para as nossas classes.

Seus olhos parecem quase negros, mesmo com a claridade cobrindo todo seu rosto. Duas esferas perigosas. É um cara bonito, de fato. Ainda mais quando sorri. Talvez ele saiba disso, pois sua boca parece congelada para cima a todo instante durante a conversa.

— Certo. — sussurro e deslizo, mantendo uma distância de pouco menos de um metro dele.

— Qual o seu nome? — pergunta.

— Eu disse que queria pensar. — respondo com sarcasmo.

— É um nome comprido. — diz sério — Foi seu pai ou a sua mãe que escolheu? — tento cerrar os lábios, mas falho com sucesso. Um riso baixo escapa pela minha garganta e gosto disso. Não sabia que precisava tanto de alguma distração para esquecer, por um breve período que seja, a batalha neural em que me meti.

— Alice. — digo.

— Legal. Combina com você. — meu olhar estava nas pessoas caminhando sem rumo, mas logo se desvia para ele.

— Você nem me conhece. — arqueio a sobrancelha e ele sorri mais.

— Justo — afirma — Sou Caio. Prazer. — ele estica a mão e a seguro por um segundo pequeno. Sua pele é quente e macia. Sem calos e nenhuma aspereza. Ouso dizer que parece até mais hidratada do que a minha.

— Prazer. — seus dedos se demoram na minha palma aberta e nossos olhares se encontram.

— Prazer é todo meu. — diz.

O silêncio depois disso não é estranho. Fico matutando coisas que ameaçam tirar o meu sossego e ele fica mexendo no seu celular. Disperso e viciado em algum jogo que não para de fazer barulhos agudos.

Talvez eu devesse simplesmente deixar para lá toda essa história e seguir com a minha vida. Quais as chances da minha memória voltar, sendo que nem sei o que pode ter causado isso?

Parece só idiotice perder meus neurônios. 

Escoro no tronco para ficar em pé e aceno para o Caio. Independente de qual seja a partida que esteja jogando, parece importante, pois ouço sua voz baixa demais quando começo a andar, sem nem levantar os olhos até mim.

— Quer disputar esse lugar de novo amanhã, querida? — paraliso ao ouvir a última palavra, como se, de algum jeito perturbador, soasse familiar para mim. Como se já houvesse escutado diversas vezes. Eu sei que sim, posso sentir, mas aonde foi e vinda de quem?

Querida

— Vamos ver. — minhas passadas ficam largas e não olho para trás. A sensação de reconhecimento continua queimando meu peito, mesmo não fazendo sentido algum. 

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