Capítulo 2

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| A l i c e |

O dia já está amanhecendo quando saio do hospital.

Essa é a melhor parte de um plantão noturno, pois quando ele termina e o sol começa a nascer, aquecendo a minha pele levemente, sinto-me renovada. Como se toda minha energia fosse refeita. É uma sensação muito boa, é como se o alvorecer trouxesse novas possibilidades. Gosto de pensar que sim.

Fecho os olhos e inspiro profundamente. O ar ainda está um pouco frio, o que faz arder todo o caminho do meu nariz por onde ele passou, mas ainda assim, sou uma mulher de manhãs. Nada é mais bonito.

O cheiro de pão de queijo e café recém passado é tão convidativo, que não penso duas vezes antes de entrar na padaria.

Estou exausta, mas nunca cansada o suficiente para não conseguir mastigar.

— Bom Dia, Al. — Sueli sorri assim que me aproximo e retribuo, obviamente. Desde que comecei a trabalhar aqui perto, esse lugar se tornou meu preferido.

A fila na Starbucks do outro lado da rua já é intensa a essa hora, pessoas viciadas no seu Latte. Não julgo, até experimentei uma vez, mas nada se compara a um bom e velho pingado. Ainda mais por um terço do preço.

Quando se é universitário, qualquer trocado é ouro, então só estou valorizando meu pote.

— Bom Dia, amiga. — sento-me no banco a sua frente e aponto para a estufa — O maior de todos, por favor. — comento e ouço sua risada alta.

— Como sempre. — retruca divertida.

— Exatamente. — confirmo e agradeço quando a xícara é posta no balcão, acompanhada de um gigante pão de queijo.

Enquanto mordisco, não posso deixar de pensar sobre aquele assunto que tentei, vezes até demais, ignorar. A cena se repete na minha mente como um filme. Voltando e voltando sem parar, não querendo me dar um segundo de paz. 

Como alguém tão bonito, pode ser tão sinistro? Alias, como alguém tão diferente, de tantas formas, pode sequer existir? 

Tantas perguntas dançam na minha cabeça, mas não tenho nenhuma resposta. 

Isso é tão frustrante.

Estico o braço para descartar o papel sujo no lixo e fico em pé em seguida. Com um último gole na minha bebida, puxo a comanda e coloco a bolsa sobre o ombro.

— Estava delicioso. — digo para Sueli e ela pisca de volta, atendendo algum outro cliente.

Hoje é sábado, o que significa que a Ana tem um plano. Seja para ir a algum bar qualquer ou simplesmente, ao cinema. Só é proibido não fazer nada.

Estou acostumada com as suas loucuras, somos vizinhas desde que posso me lembrar e desde então, somos quase inseparáveis.

Pego o celular enquanto caminho pela calçada até o meu ponto. Altero do modo silencioso e começo a rolar o dedo pelas notificações enquanto aguardo o ônibus.

Pretendo chegar em casa e dormir por algumas horas, caso contrário, estarei tão podre a noite, que recusarei qualquer convite dela e aceitarei de bom grado as consequências, porque se tem uma coisa que a Ana sabe fazer, é discurso melodramático. É uma rainha nisso.

Talvez ela até possa me vencer por isso. Não sei se minha força é grande o bastante para tolerar sua exibição teatral.

— Oi, querida. — meu pai, como uma coruja, cumprimenta assim que abro a porta.

— O senhor sabe que pode descansar mais, certo? — brinco e beijo sua bochecha.

— Sei. — sorri — Mas quando se está novo como eu, a coluna não aguenta tanto tempo na horizontal.

— O senhor está maravilhoso. — digo e ando em direção ao corredor — Vou tentar dormir um pouco, pai.

— Claro, bom descanso, Al. — responde sem desgrudar os olhos das suas palavras cruzadas.

De banho tomado e pijama, arrasto a cortina para que cubra qualquer luz da janela. Sinto o cansaço chegando, enfraquecendo meu corpo e me deito. 

Se estivesse ocupada, ainda teria muito gás e um desempenho invejado, mas depois da água quente e do seu poder no meu corpo sonolento, estou morrendo.

Em alguns minutos, completo um dia acordada e esse é o meu limite. Meus reflexos ficam péssimos e meu pensamento lento, como se eu quase permanecesse em um estado vegetativo.

É engraçado como somos tão limitados e é um pouco injusto também.

Gostaria de poder fazer mais em alguns momentos, principalmente quando é um caso grave ou quando é uma criança. Isso, definitivamente, me destrói. Tão pequeninos e tão inocentes. Não merecem sofrimento jamais.

Sinto a escuridão se aproximar e minha mente começa a divagar. Perdida e sem um rumo aparente, mas infelizmente, apenas por um curto período, pois como se tivesse vida própria, ela traz até a superfície o que eu estava querendo evitar, o que eu estava afundando e desligando nesse mar de inconsciência.

Imagens dele.

Do seu sorriso debochado e torto.

Dos seus olhos tão intensos e sombrios, e da claridade da sua íris, como um diamante raro.

E também, claro, da sua completa falta de emoção humana.

Por maior que seja a vontade de me entregar e acordar somente ao anoitecer, fico inquieta.

Não se pode descansar verdadeiramente quando se tem coisas demais na cabeça. Não quando seu pensamento é tomado por um homem que desafia todos os estudos da anatomia, das horas que me dediquei aprendendo. Não quando seu coração acelera no peito, palpitando rapidamente em um compasso maluco.

Culpa da sua beleza singular ou apenas pela sua estranheza curiosa.

Ainda não sei e espero nunca descobrir ou vê-lo outra vez.

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