visse?

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Durante toda a história da filosofia pensadores levantam hipóteses sobre a natureza do ser humano. Seria ele bom ou mal? Em seu cerne teria maldade, bondade, ou nenhum dos dois?

De teorias que vão de considerar o homem inerentemente mau — como a de Hobbes —, até teorias que acreditam num ser genuinamente bom, pelo menos no princípio — como as de Rousseau e Santo Agostinho —, é difícil saber qual a correta. Quem está certo? Quem não está? Será que existe uma teoria correta? Será que todos os seres humanos tem uma natureza em comum? Será que bem e mal são mesmo características típicas da humanidade? Seriam elas desenvolvidas, talvez?

Não me coloco em posição de definir qual a teoria vencedora, nem sequer me acho no direito de fazê-lo, mas prefiro me prender à explicação de Jung. De acordo com ele, não somos 100% nada. Não temos só bem ou mal, e não nascemos só bons ou só maus. Ser humano é ter a luz e a sombra dentro de si, é escolher diariamente que lado mostrar, que lado vai te dominar. A natureza humana se baseia na dualidade. Viver, realmente viver, é saber balancear esses dois lados dentro de si. É andar nessa corda bamba sem fim, onde o equilíbrio é seu maior aliado. É saber que a vida é luz, mas que onde há luz também há sombra, e fugir do lado ruim da vida te priva de viver.

Márcia sempre havia tido problemas em lidar com sua própria sombra. Conhecer seu lado ruim assusta, ainda mais quando sua filosofia de vida diz que a luz é a meta. Quando ela diz que sair da luz é errado, e que o pecado te priva da luz eterna. Como aprender a equilibrar sua dualidade, se sua crença diz que só um dos seus lados vai te levar à salvação?

Quando chegou num ponto bom em sua vida, um lugar em que ela sentia-se iluminada, a mulher acreditou que havia cumprido seu próposito e que seguiria ali pelo resto de sua existência. Andar nos trilhos, sem sair, esse era o plano — o único plano possível. O problema é que viver funciona como uma espécie de elástico, e quanto mais você se apega à aurora, maior a chance do anoitecer te derrubar quando ele chegar.

E a noite chegou.

O baque da morte de seu marido foi tão forte que Márcia achou que nunca mais veria o lado bom da vida de novo. Ela estava fazendo tudo certo, se mantendo afastada do pecado e das coisas erradas que o mundo tinha a oferecer, então por que aquilo havia acontecido com ela? Por que ela, uma mulher boa, havia sido deixada ao léu com uma filha e um emprego que mal cobria os custos de comida no mês?

Além de chegar, o escuro a cegou. E cega ela ficou por meses, até conseguir reencontrar sua luz na igreja. Desde então, com medo de cair novamente, a mulher havia decidido ficar onde ela sabia que a luz nunca a abandonaria: sob o teto colorido da pequena capela de Borá. Lá ela conseguiu se reerguer, conseguiu colocar sua filha num bom caminho e ter perspectiva de um futuro. É, ela estava de volta a um bom lugar.

Até que Gizelly cresceu e decidiu estudar fora.

Uma coisa sobre mudanças é que elas trazem incertezas, e a incerteza se baseia na dualidade. Pra uma pessoa que foge da dualidade, as mudanças assustam, ou melhor, amedrontam. Pensar em deixar sua filha sair de seu ninho pra uma cidade nova, grande e agitada, era aterrorizante. Márcia temia tanto pela filha quanto por si mesma. E se Deus falhasse com ela de novo? E se sua filha se afastasse da claridade na sua ida pra cidade grande? E se?

— Vai me deixar sozinha mesmo?

Gizelly penteava seu cabelo, encarando o espelho, enquanto ouvia sua mãe fazer drama. Márcia estava andando pela casa e se lamentado desde o momento em que descobriu que sua filha sairia naquele sábado. Em sua cabeça não fazia sentido a morena deixá-la sozinha no apartamento, não no final de semana.

— É só um pouquinho, mãe. — Fala a contadora do banheiro, terminando de arrumar seus cachos. — Confraternização de trabalho, coisa rápida.

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