a comida tá esfriando

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Crer.

Quatro letras que carregam e levantam tantos debates, tantos que chega a parecer um fardo pesado demais para uma palavra tão pequena.

É até mesmo difícil definir o que é crer em uma sentença. Obviamente é acreditar, mas não se limita a isso. Crer é esperançar. Também pode ser enganar-se. Pode ser preservar-se. Pode ser uma forma de defesa - ou de ataque. Crer, crença, crenças, palavras curtas mas que causam tantas desavenças - e reconciliações. Crer pode ser uma concessão, uma obrigatoriedade ou um luxo. Por crenças civilizações complexas já foram destruídas e coisas bestas ganharam vida. Crenças tem poder, mas são tão frágeis quanto uma sílaba.

A verdade é que é muito difícil achar o limite do crer. Quem poderia afirmar que a vida por si só não é uma crença? Se considerar vivo não é, logicamente, acreditar na própria existência? Em que momento o crer dá lugar ao concreto - e existe um concreto afinal?

Mas essas são questões da filosofia, e quem sou eu pra tentar desvendá-las depois que tantas mentes brilhantes já tentaram?

Marcela como uma amante da filosofia que era adorava pensar nessas questões, mas não podia negar que por vezes deixava de aceitar que suas crenças não passavam disso: de "acreditares". Seu ateísmo por vezes a cegava da realidade de que não crer também é crer — já que a crença na não existência é tão sólida quanto a na existência — e isso a fazia assumir posições complicadas.

Rodeada de cristãos no jantar na casa de infância da namorada, a loira sentiu o peso de ser uma exceção.

Gizelly, ao contrário da loira, teve a fé como seu norte por toda sua vida. Da igreja aos costumes, ela experimentava a vida apoiando-se nesses pilares abstratos. Neste último ano a contadora havia passado por um grande abalo em seu sistema de crenças, de modo que seus pilares bambearam tanto que alguns até chegaram a cair. De crenças religiosas à sociais, sua cabeça havia mudado de maneira que até ela mesma se estranhava as vezes. Naquele jantar, entretanto, ela estava cuidadosamente se segurando nos pilares que costumava ter e mantendo-se sobre aqueles que haviam resistido às turbulências. As aparências importavam, então ela tinha de crer no que já havia deixado pra trás — mesmo que só por algumas horas e, principalmente, mesmo que não fosse verdade.

Ir até o balneário mais cedo havia despertado nela uma paixão que ela não lembrava que tinha, e Julia havia trago a tona um esperançar que ela nem sequer recordava ser real em algum momento de sua vida. Nadar lhe parecia uma atividade distante, tão distante quanto seus músculos lembravam e sua memória permitia, mas ao mergulhar naquela lagoa a contadora teve certeza de que aquela habilidade nunca havia a deixado.

Enquanto competia com o seu mais novo irmão a morena se perguntou como aguentou ficar tantos anos distante das águas. Pra sua surpresa, a resposta era a mais simples de todas: ela deixou de acreditar em seu nado. E num trocadilho ruim, quando ela deixou de nadar então nada começou a fazer.

Numa surpresa boa, a natação mostrou o equilíbrio perfeito entre as duas vidas para a morena, e era essa sensação que lhe ajudou a seguir pelo resto do dia. A sensação de equilibrar-se, de saber o quanto ceder e o quanto resistir à sua própria cabeça e aos fatores externos.

— Vocês vão na igreja com a gente amanhã? — Questiona Márcia enquanto Julia e Jeferson terminavam de arrumar a mesa.

— Estávamos pensando em viajar o quanto antes, mãe.

— Ora, vão depois. — Fala a mulher. — André e os filhos vão pro culto e eu vou pra missa, adoraria ter companhia amanhã.

— Não sei mãe... — Fala a morena olhando pra namorada.

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