quem já se perdoou?

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Antes mesmo do Sol tomar sua posição no ponto mais alto do céu, todos da casa já estavam prontos para ir à igreja. André e seus filhos vestiam roupa social, os três muito elegantes e extremamente perfumados terminavam de arrumar as camas e ajeitar o sofá da sala. Dona Márcia, Gizelly e Marcela usavam vestidos, todos rodados e sem estampa. A loira não havia levado nenhuma roupa que ela achava ser adequada para ir à missa, então pegou um vestido emprestado com a namorada. Com certeza não era um look que ela escolheria por conta própria, mas não havia ficado de todo terrível.

— Você devia usar vestido mais vezes, Marcela. — Diz Márcia passando por ela enquanto ia em direção ao quarto para guardar os lençóis recém lavados que tinha acabado de tirar da máquina. - Caiu muito bem em ti.

— Obrigada. — Diz a psicóloga com vergonha.

— Ela tem razão, você está linda amor. — Cochicha Gizelly em seu ouvido.

— Não mais que você.

A morena sorri e estende a mão pra ela, que a segura e vai de mãos dadas com ela até a garagem.

— Vamos, crianças, ou vamos nos atrasar. — Diz André chegando na garagem enquanto abotoava a manga de seu terno.

As namoradas rapidamente escondem as mãos dadas atrás das saias de seus vestidos.

— Não somos mais crianças, pai. — Diz Jeferson saindo de casa.

— Pra ele sempre seremos. — Fala Júlia já conformada.

— Pronta, querida? — Pergunta o homem quando Márcia chega na garagem.

— Sim, querido.

André enlaça a cintura da mãe da contadora em um abraço de lado, deixando um singelo beijo em sua bochecha em seguida. A matriarca sorri. Ver André ser tão carinhoso confortava o coração inquieto da morena, que observava sua mãe estar em boas mãos.

- Vamos deixa-las na igreja antes de ir pro culto, então não temos tempo a perder. - Fala André abrindo o portão da garagem para que todos saíssem.

Num piscar de olhos já estavam todos na picape vermelha que estava estacionada no lado oposto da rua. Marcela havia oferecido para dividirem as pessoas e ela ir dirigindo o próprio carro, mas a oferta logo foi recusada pelos mais velhos. Portanto foram Márcia e André na frente, Gizelly, Julia e Marcela no banco de trás, e para Jeferson restou ir na caçamba.

Chegando na primeira parada, as três mulheres descem do carro e se despedem do resto da família.

Marcela se lembra da primeira vez em que estivera ali. Ela nem imaginava que a pessoa que ela havia resolvido ajudar — sem ao menos conhecer previamente — era o amor de sua vida. Ela olha pra morena, que cumprimentava alguns conhecidos conforme elas caminhavam em direção à entrada da igreja, e sorri. Sorri por saber que havia feito a coisa certa ao intervir naquela conversa entre Márcia e a outra mulher.

— Eu e Marcela nos conhecemos aqui, filha.

— Sério? — Pergunta a contadora surpresa. — Na igreja?

— Após a missa. — Fala a psicóloga.

— Foi uma benção, viu minha filha? — Fala Márcia olhando pra loira.

— Eu acredito. — Fala a contadora sorrindo e olhando pra ela também.

A loira cora, colocando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.

— Agora vamos apressar o passo, que o padre já chegou.

Elas adentram o lugar, fazendo o sinal da cruz ao passar pela porta, e sentam-se num dos bancos do meio. Marcela preferiria ficar no fundo, mas considerando que suas opções eram ou ali ou a primeira fileira ela estava mais do que satisfeita.

O padre entra em conjunto com os ministros e se dá início à celebração. A loira era muito cautelosa em imitar o que todos faziam, querendo pelo menos fingir que tinha familiaridade com a religião, mas eram tantas falas e sinais que ela sentia-se num filme de missão impossível.

Gizelly, por outro lado, estava na mesma sintonia que o resto da igreja. Não perdia uma única deixa de música ou ficava em silêncio quando a paróquia bradava em coro as orações. Ali, no meio das pessoas e dentro da comunidade em que cresceu, ela finalmente sentia-se em casa. Não mais deslocada, não mais pecadora, apenas ela. Ela e Deus.

Durante o ato penitencial, a morena cantou a música Kyrie Eleison com toda a força que tinha em seus pulmões. Pela primeira vez ela cantava aquela música sentindo-se leve, sem o peso de achar que amar era um erro. Ela havia se libertado, e não havia nada melhor que isso.  Não havia nada melhor que dividir seu lugar de paz com o amor da sua vida.

— Como a pecadora caída, derramo aos teus pés minha vida. — Canta ela antes de cair em lágrimas, mas lágrimas de alegria.

A psicóloga percebe seu choro e tem vontade de a envolver num abraço e conversar, mas logo se lembra que havia prometido que não a trataria mais como paciente. A morena precisava lidar com aquilo sozinha, já estava lidando. O que ela podia fazer pela namorada ela já tinha feito.

O choro da contadora cessa conforme a leitura da liturgia acontece. O coração da loira também vai se acalmando nesse meio tempo.

— Hoje, irmãos e irmãs, venho com vocês falar sobre perdão. — Diz o padre descendo do altar e indo em direção aos bancos. — E sei que parece que sempre estamos falando sobre perdão, o que não deixa de ser verdade, mas hoje quero falar sobre um tipo diferente de perdão. Mas antes, quem aqui já foi machucado? Por alguém que amava, por alguém que não gostava...

Todos da igreja erguem as mãos, alguns mais tímidos outros menos.

— Quem aqui perdoou a pessoa que a machucou? — O padre pergunta e várias mãos se levantam, porém não todas. Gizelly e Márcia tinham suas mãos levantadas.

— Alguém aqui já se machucou? Não de tropeçar e cair, mas de se depreciar. Se xingar. Se culpar.

Novamente todos erguem as mãos.

— E quem já se perdoou? Mas perdoar de verdade. Se livrar de toda culpa, toda dor. Quem está em paz consigo mesmo.

Desta vez, quase nenhuma mão se ergue além da do próprio celebrante. No entanto, a contadora faz questão de levantar a sua com convicção e coragem. Marcela tem de segurar as lágrimas ao ver seu gesto. 

— Que benção, meus irmão e minhas irmãs, que benção que sejamos capazes de superar nossas próprias falhas. Porém, como podemos ver aqui, muitos não conseguem. Então vos pergunto: por que achamos que o outro merece mais perdão que nós mesmos? — O padre diz prosseguindo com seu sermão.

A missa prossegue e, para a surpresa da loira, não é tão intragável quanto ela achava que seria. A homilia tinha um tema relevante para a psicóloga e poderia até mesmo lhe ajudar profissionalmente. Não havia perdido sua manhã, afinal.

Ao fim da missa a igreja se esvazia rapidamente, de modo que a praça em frente a ela se enche de pessoas. É ali que elas se reencontram com André e sua família, que haviam estacionado a picape e decidido caminhar um pouco enquanto aguardavam a chegada das três mulheres.

Contrariando todos os planos que Marcela tinha, eles decidem almoçar fora, em família. Então vão todos para o restaurante de uma antiga amiga de Márcia, onde comem, conversam, brincam, tiram fotos, a coisa toda. Coisa de família.

Gizelly sabia que não era o cenário perfeito, mas ver Marcela sendo tão acolhida por todos a deixava nas nuvens. Poder dividir aquele tempo e aquelas pessoas com a loira era incrível e ela não poderia estar mais feliz.

Na hora da despedida muitos abraços e beijos, mas nenhum tipo de tristeza. Elas estavam indo mas com a certeza de que voltariam, e a volta seria motivo de festa. Contudo, após deixar Borá pra trás, a contadora não se aguenta e cai no choro assim que elas pegam a estrada.

— O que foi, bê? — Pergunta Marcela preocupada, colocando uma mão sobre sua coxa.

— Eu só tô muito feliz. — Ela se contenta em dizer.

E elas seguem o resto da viagem em silêncio, relembrando os bons momentos vividos na cidade natal da morena.

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