não sei se tô pronta

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Gizelly, num geral, não tem lembranças muito vívidas de sua infância. Suas memórias desse período de sua vida são como borrões pastéis que só fazem sentido quando olhados de longe, quase que como num quadro de pintura abstrata. Manchas da criança que ela foi e que a tornam a linda bagunça colorida que ela é atualmente.

Porém, uma memória que lhe era tão nítida quanto um filme é a de seu aniversário de dez anos. Como ela e a mãe não tinham muito dinheiro, seus aniversários sempre eram comemorados no pequeno salão de festas da igreja. Todo semestre a comunidade juntava dinheiro e realizava uma festa coletiva pras crianças aniversariantes, mas naquele ano foi diferente. Naquele ano ela comemorava sua primeira década, e isso era um marco — merecia uma comemoração a altura. Então, naquele ano toda a vizinhança se organizou para realizar uma festa exclusivamente para a morena.

Dois anos após a morte de seu pai, dois anos após seu mundo ter sido virado de ponta cabeça, a pequena Gizelly finalmente lembrou como era ser criança. Como era bom ter a atenção para si, não por pena, mas por alegria. Naquele dia ninguém comentou sobre como ela era uma coitadinha ou como sua vida era triste, todos apenas a parabenizaram e a trataram como tratavam todas as outras crianças. Ela sentia-se uma pessoa de novo, e não uma sombra da morte de outra.

Naquele ano a morena acreditou que tudo mudaria, que a partir dali ela pararia de ser vista como uma pobre coitada. É, infelizmente ela estava errada.

— Eu sempre gostei muito de aniversários. — Fala a contadora olhando pela grande janela da sala em que estava. — Talvez goste um pouco da ideia de ser o centro das atenções, mesmo que secretamente.

— Por que secretamente? — Pergunta Daniel, que andava pela sala vagarosamente, revezando o olhar entre ela e o nada.

— Não acho que aparento gostar dos holofotes. Sou mais discreta.

— Por opção?

— Acho mais que por falta dela. — Diz a morena refletindo. — Se fosse por opção, não gostaria tanto de aniversários.

— E você acha que atenção é o único motivo pelo qual você gosta da data? — Pergunta o loiro parando de andar e virando o rosto pra janela, tentando enxergar o que a contadora tanto observava do lado de fora. — Digo, atenção foi algo que você sempre teve. Não já me disse que era uma espécie de criança prodígio quando se tratava da igreja? Isso não pressupõe que você era enxergada? — Dani pontua, fazendo Gizelly se remexer em seu assento. — E digo mais: amanhã vai ser o grande dia, mas você não me parece muito animada. Considerando que sua mãe está na cidade, você terá toda a atenção do mundo.

— A atenção da minha mãe não conta.

— E por que não?

Porque tudo que ela faz e fala gira em torno do meu pai, não de mim. Eu sou só a filha dele.

— Porque tenho todos os outros dias.

— E das outras pessoas não?

O loiro pergunta a olhando e a contadora para pra pensar. Não é como se todos a ignorassem, é só que fora da data as pessoas, as de Borá no caso, voltavam a lhe ver como uma pobre coitada. Aquele tipo de atenção não lhe servia. 

— Não dos boraenses.

— E dos paulistanos?

— Com eles é diferente.

— E por que?

— Porque eles não me tratam como vítima. — Desabafa a morena, finalmente.

— Então o problema não é a atenção, mas sim o tipo dela, certo? — O loiro pergunta com a voz serena, sentando-se sobre a poltrona.

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