por tudo

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Há algo muito engraçado sobre voltar a um local que já foi seu, mas hoje não é mais. Seja uma casa, uma escola, um bairro, uma esquina, qualquer ponto geográfico que já fez parte da sua rotina e hoje não passa de um reservatório de boas memórias. É uma experiência que fica em algum lugar entre voltar no tempo e visitar uma realidade paralela, especialmente se você saiu deste ambiente mas as outras pessoas que viviam ali com você não.

Voltar naquele ponto e ver que as pessoas são as mesmas, o clima é o mesmo, mas você não pertence mais ali pode causar vários sentimentos — dor, alívio, culpa —, mas uma coisa que sempre há é a impressão de estar à deriva naquele lugar que você talvez já tenha chamado de lar. As memórias passam como um filme enquanto você percorre cada centímetro do lugar com seus olhos, e cada descascado de tinta ou defeito no piso é um gatilho de memória nova. Toda essa vivacidade ocorre na sua mente, mas no exterior ali nunca pareceu tão frio. 

E era por isso que Gizelly não gostava de revisitar lugares que um dia conhecera e vivenciara.

Na manhã da ida até Borá, a psicóloga fez questão de ir busca-la em sua casa. A morena achou fofo o gesto, mas alguma coisa lhe dizia que Marcela havia feito isso para certificar-se de que ela não fugiria ou desistiria na última hora.

Pensar em retornar à pacata cidade de Borá, ainda mais depois de tudo que ela havia aprendido sobre a vida e sobre a si mesma na capital, com certeza parecia ser uma viagem no tempo. Uma viagem pro passado, um passado menos distante do que lhe parecia ser, mas ainda assim algo que já não lhe cabia mais. O pensamento de voltar lá fazia a contadora sentir-se fora do lugar, como se tentasse usar uma meia que claramente está apertada demais. Ela não saberia especificar se por ter de esconder seu namoro, se por ter de esconder seu lado extrovertido, se por ter de mentir sobre o que fazia em São Paulo, se por ter de fingir que ao menos queria ir à aquele jantar em primeiro lugar ou se por uma junção de todas as coisas supracitadas.

A loira, por outro lado, estava mais do que feliz em ver a namorada se permitindo voltar para aquele lugar que havia lhe causado tanta dor, mas com um objetivo feliz. Sua sogra se casaria e sua namorada seria madrinha do casamento. Sabendo do histórico das duas, aquilo com certeza parecia estar acontecendo numa realidade paralela.

— Pegou um casaco? — Pergunta Marcela colocando o cinto de segurança.

— Peguei, Marcela. — Responde a contadora já cansada de todas as perguntas sobre o que ela estava levando ou deixando de levar.

— Por precaução eu trouxe outro, tá ali no banco de trás. 

— Você trouxe um casaco seu pra eu usar na casa da minha mãe? — Pergunta a morena com uma sobrancelha arqueada.

— Quem disse que era meu?

A contadora enruga as sobrancelhas e vira-se pra trás, dando de cara com seu casaco roxo sobre o banco traseiro do carro da namorada.

— Você tava com o meu casaco esse tempo todo?!

— Você que deixou lá em casa.

— Eu tava doida atrás dele. — Fala Gi indignada.

— Mi casaco, su casaco? — Diz a loira com um sorrisinho, querendo fugir da ira da namorada.

— Quero ver se tu falaria isso se eu pegasse aquela sua calça jeans que você ama.

— Falaria sim, até porque você já usou uma vez. — Rebate a psicóloga rapidamente. — E ficou uma baita de uma gostosa.

— Credo, parece um homem falando. — Diz a morena com nojo e Marcela ri, dando partida no carro.

A viagem seria longa, então a loira encarregou-se de encher o porta luvas e o banco traseiro de lanchinhos e guloseimas, além de água, é claro. Embora dirigir não fosse uma de suas coisas favoritas, Marcela não negava que dirigir em estradas, especialmente no interior, lhe trazia certo bem estar. Ir até a cidadezinha lhe faria algum bem.

A psicóloga liga o GPS e sai da vaga, começando a seguir as instruções que o navegador lhe dava.

— Da última vez que eu fui lá acabei sem sinal, espero que dê tudo certo dessa vez.

— Não sei se você lembra, mas eu cresci lá. — Fala a morena sarcástica.

— Desculpa aí, boraense.

A loira coloca música, rezando para o humor da namorada melhorar conforme a viagem passasse. Ela sabia o quão nervosa a contadora devia estar, então nem se importava muito com as patadas e etc. 

Até sair da área urbana é uma boa parcela de tempo, e é esse tempo que Gi usa para acalmar-se. Olhar os prédios da capital sendo deixados para trás por elas era uma espécie de detox para a morena. Ela não deixava São Paulo há meses, seria bom renovar um pouco os ares — ou pelo menos era isso que ela escolhia acreditar para sentir-se melhor.

Intimidade de Liniker começa a soar pelos alto-falantes do carro, com as primeiras notas tocadas por um piano preenchendo todo o ambiente. A contadora não conhecia a cantora antes de conhecer a loira, mas suas músicas com certeza eram um presente que a mudança havia lhe trazido. A voz e as letras lhe acalmavam, lhe traziam conforto e, melhor de tudo, a lembravam do amor da sua vida.

"Vem me visitar de madrugada, 

Coloca tua mão em mim que eu deixo 

Sem pressa você chega e fica, eu finco afeto nesse peito 

Três dias sendo leito, mamando no peito desse calor que é bom."

Marcela coloca a mão sobre a coxa da morena, começando um carinho de leve ali.

"Sei que eu tenho o dom de dar mergulho com o olhar 

Pega e dirige para a casa no dia, também 

Que o nosso carinho não dói em ninguém 

Sou tua amiga, amante, serpente, meu doce bem."

Coincidência ou não, Gizelly sentia que aquela música transmitia o que a loira gostaria de falar pra ela mas não articulava.

Não importava se em São Paulo, Borá ou Tóquio, ela estaria ali pra ela, apoiando-a e servindo de ponto de paz.

"Soma, mas não some, fica e a gente dorme 

Incenso a casa com alecrim 

Cê segue a vida e eu sigo assim, 

Na estrada, no trem, de Berlim à Belém 

O que é que é tirar um tempinho ficar mais perto de mim? "

— Obrigada. — Fala a morena. — Por tudo.

A psicóloga abre um sorriso, lhe mandando um beijinho em seguida.

Gizelly toma a liberdade de colocar a música em looping, e assim esta fica até que as construções urbanas são substituídas pelo verde da grama e das árvores que envolviam a estrada até a cidade destino.

Viagens de carro podem ser muito entediantes, mas com Marcela a vida nunca era tédio. Talvez ócio — como elas já haviam discutido muitas e muitas vezes —, mas nunca tédio. Tédio inclui estar insatisfeito, e as duas nunca estavam insatisfeitas quando ao lado uma da outra. Elas tinham aquele tipo de amor calmo, sem turbulências e muitos confrontos. Era um amor pacífico. Estar indo em paz para um lugar que poderia vir a ser conflituoso para a morena era um pequeno respiro de ar fresco antes de mergulhar nas águas incertas do futuro.


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