Quando Briseis saiu trôpega do quarto, eu sentia meu coração como uma britadeira dentro do peito. Parecia que ela ainda estava ao meu lado na cama, seu cheiro impregnado em cada pedaço dos lugares por onde ela passara. A intensidade de seu olhar quando me disse que eu seria incapaz de ficar para sempre queimando dentro de mim.
Pois, por mais que eu quisesse, não poderia simplesmente continuar mentindo, fingindo não ser mais uma das pessoas que partiria um dia.
Porque sim, eu era. E estava extremamente envergonhado por ser tão fraco. Tudo o que precisava fazer era garantir que ela não quebrasse. Ficar ao seu lado durante os pesadelos, ajudar a não deixar que o terror lhe consumisse. Então por que não consegui fazer apenas isso?
Logo mais, a qualquer instante, o portal para Hanaros seria aberto e eu sumiria sem dar explicações. Lucinda teria um leque de opções para justificar meu sumiço repentino: inventar que resolvi partir, morri, ou mesmo recebi uma proposta irrecusável de uma bolsa esportiva numa faculdade nos Estados Unidos..., mas nada daquilo seria real. Eu não queria enganar a única pessoa que me via pelo que eu era, para além da minha coroa, além dos meus deveres, além da minha posição como hanariano. O único ser que era capaz de me enxergar sem pensar no quão fadado ao fracasso eu estava.
Pela primeira vez em meses, me sentia útil, sentia que minha presença fazia alguma diferença, que eu não estava ali apenas para estragar tudo. Diferentemente das diversas vezes em que Lucinda dera a entender que eu estava sendo sobrecarregado, aquela rotina não era um fardo para mim. Os primeiros dias foram realmente mais difíceis: eu ficava horrorizado durante todas as noites, quando era despertado pelos terríveis gritos que quebravam o silêncio da casa. Embora não fizesse muito sentido, ninguém além de mim conseguia ouvi-la. Claro que o isolamento mágico colocado por Lucinda no quarto poderia estar interferindo. Porém, quando perguntei à guardiã sobre como poderiam deixar que a garota se esgoelasse sem ajuda, ela me explicou que não havia nada que a trouxesse de volta. Nada. Após alguns minutos os pesadelos passavam, mas até lá era necessário ficar exposto ao terror psicológico e impotência ao ouvir alguém implorar por ajuda e ser incapaz de socorrer. Eu não os julgava por recorrer àquela saída, sabia os efeitos que os pesadelos causavam. Contudo, por que eu ainda era o único capaz de escutar os gritos? Era como se tivéssemos uma conexão...
Onde raios eu estava com a cabeça?! Conexão com humanos? Foi daquilo que eu havia fugido minha vida inteira, de toda aquela coisa com criar elos difíceis de serem quebrados. Na última vez que fui contra meus instintos fora completamente enganado e perdera Arminda para sempre.
Mas então ao longo daqueles dias, eu havia falado de quase todos os aspectos da minha vida e ouvido sobre todos os medos e livros lidos por Briseis. Enquanto ia até a biblioteca pegar livros novos me referia a ela como uma amiga; quando assistia às aulas insuportáveis de história do Brasil, pensava no quanto ela gostaria de estar lá. Ocasionalmente, me flagrava analisando suas linhas ao aguardar que os terrores noturnos se dissipassem, observando a transição em seu rosto do completo horror para uma quase calma enquanto ressonava em meus braços.
Tudo aquilo estava errado em tantos níveis que eu não conseguiria sequer pontuar.
Desde a chegada da garota ao Vale das Estações as coisas haviam tomado uma proporção inimaginável. E não apenas as coisas dentro de mim — aquelas sobre as quais eu já refletira um milhão de vezes na mesma tarde —, mas também as concernentes ao mundo mágico.
Nada parecia estar correto, a começar pelo fato de que Briseis e Karen já se conheciam.
Uma estranha e, diga-se de passagem, infeliz coincidência.
E elas não apenas se conheciam, como também se odiavam. O que me deixava em meio a uma saia justa. Eu convivia com Briseis há algumas semanas e já sabia mais sobre sua vida do que já soubera alguma vez sobre Karen. Entretanto, Briseis era uma humana, enquanto Karen a imperatriz, a pessoa que eu deveria confiar para completar a missão junto a mim.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...