— Arrrrrrrgh!
Meus olhos dispararam até o local de onde partia o grito.
Alguns metros atrás de mim, caído ao chão, estava o garoto. Se encontrava deitado, bem em frente ao monstro; sangue vermelho vivo escorria de sua perna esquerda por um corte profundo. Percebi desolada que Heitor ficou próximo o bastante do krenger para ser atingido de raspão. Ele gritava, em agonia, incapaz de levantar. Comecei a correr de volta para a mira do monstro, tentando o ajudar. As garras cortaram o ar novamente quando eu arrastei o garoto para mais longe, evocando uma força que, com toda certeza, não pertencia a mim.
Não cheguei muito longe. Meus pés derraparam, fazendo com que eu caísse de costas no chão com Heitor sangrando próximo a mim. O Krenger deu um passo se aproximando mais de nós e elevando as garras acima de nossas cabeças; Heitor virou, buscando meu rosto e quando nossos olhos se encontraram, uma mensagem silenciosa e rápida foi enviada: estamos perdidos.
Nós sabíamos disso, a partir do momento que o Krenger descesse as garras novamente, não haveria para onde fugir, seria em nós que elas acertariam.
Olhei para cima, jurando que aquela seria a última vez em que eu veria alguma coisa.
É antigo o ditado no qual dizem que o tempo desacelera quando estamos prestes a morrer. E foi exatamente o que aconteceu: tudo ao redor começou a se passar em slow motion.
O filete de sangue escorrendo lentamente da perna machucada de Heitor, se acumulando no tecido jeans de sua calça. Seus cabelos castanhos emaranhados e sua pele que na luz do pôr-do-sol parecia cintilar. Acima de nós a grande mão do Krenger com suas garras afiadas que desciam aos poucos em nosso encontro. Fechei os olhos fortemente, esperando que não doesse, que fosse rápido. Pensei em Heitor também e desejei que na eternidade, onde estivéssemos, ele me perdoasse por tê-lo levado à morte assim como eu levara Rosilda antes.
Segundos demais se passaram quando decidi que ser fatiada por garras afiadas e servir de almoço para aquele ser horrendo não me causara dor. Era estranha a percepção de que morrer também me deixava ciente do peso do corpo do garoto apoiado em minhas pernas e do meu coração batendo em descompasso. A conclusão mais lógica a se chegar era a de que estava viva e que abrir os olhos seria o melhor se eu quisesse continuar naquele estado.
Felizmente, nós não estávamos mais na mira do Krenger. Infelizmente, ele ainda estava na cidade. E o pior: se dirigindo para a biblioteca, onde provavelmente havia dezenas de pessoas.
— Heitor! — chamei, tirando-o de cima da minha perna e apoiando-o em meus braços. — Céus, você está bem?
Ele buscou imediatamente esconder qualquer indício de dor em seu rosto. Sua pele apresentava uma temperatura preocupantemente fria e o rosto estava lívido como porcelana quando notou para onde a fera se encaminhava.
— Eu vou ficar bem — balbuciou, tentando se mover. — Precisamos sair daqui agora.
Heitor soltou um arquejo de dor, ficando imóvel novamente.
— Como você está? — insisti. — Ele te feriu mais?
— Não. Sua garra só passou de raspão por minha perna.
Eu não sei o que ele considerava como "raspão", mas quando avaliei a ferida, havia uma profundidade considerável. Sangue lavava sua perna e gotejava no chão.
— Isso está horrível — observei.
Estrondos encheram o ar e chamaram nossa atenção.
O Krenger agora já estava longe de nós, mas suas garras começavam a cortar o prédio da grande biblioteca como se fosse um bolo. Toda a parede de entrada jazia ao chão, em escombros.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...